Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
Os poemas de
Sentimento do mundo foram produzidos entre 1935 e 1940. São 28 no total.
Poema: Sentimento do mundo O primeiro poema (que deu nome ao livro)
revela a visão-de-mundo do poeta: não é alegre, antes, é cheia da
realidade que sempre nos estarrece, porque, por mais que sonhemos, a
realidade geralmente é dura e muito desafiante. O poeta inicia (estrofe
1) indicando suas limitações para ver o mundo: "Tenho apenas duas mãos";
mas aponta, em seguida, alguns elementos auxiliares que o ajudarão a
suprir suas deficiências de visão: escravos, lembranças e o mistério do
amor (versos 3 a 5); escravos podem ser os meios escusos de que nos
utilizamos para tocar a vida e decifrá-la e dela nos aproveitarmos. O
pessimismo denuncia-se com as mortes do céu e do próprio poeta, na
estrofe 2. Apesar da ajuda incompleta dos companheiros de vida
("Camaradas"), o poeta não consegue decifrar os códigos existenciais e
pede, humilde, desculpas. Nas duas últimas estrofes, Drummond pinta uma
visão de futuro bem negativo, mas bem real: mortos, lembranças, tipos de
pessoas que sumiram nas batalhas da vida ("guerra", na estrofe 3).
Conclui, na estrofe 5, que o futuro ("amanhecer") é bem negro,
tenebroso. Feita só de dois versos, sintetiza seu sentimento do mundo.
Os demais 27 poemas são nuances, explicações dessa amarga visão inicial
da vida. Poema: Confidência do Itabirano O poema começa com a saudade
profunda de seu lugar de nascimento, traçado em quatro belas, mas
sofredoras estrofes. Confessa (estrofe 3) que aprendeu a sofrer por
causa de Itabira; mas, paradoxalmente: "A vontade de amor (...) vem de
Itabira"; vale dizer que o amor nasce e é servido no sofrimento. De
Itabira vem a explicação de Drummond viver de "cabeça baixa" (estrofe
3), verso 6). Afinal, apesar das negatividades, o poeta sente uma
incomensurável saudade de sua cidade natal. Poema: O operário do mar O
texto número 6 faz o autor escapar da linguagem poética material
(versos) e se apropriar dessa linguagem poética sem versos, mas bastante
poesia imaterial, em belo painel-definição explicita a grande diferença
social entre operários e não-operários. Esta belíssima crônica poética,
de base surrealista – tão em voga nos anos trinta, quarenta – serve bem
para duas constatações: 1ª) o sentimento socialista de Drummond que
iria espraiar-se cinco anos após Sentimento do mundo, na publicação de
Rosa do povo, em 1945; 2ª) a visão-de-mundo onírica e bem poética de um
operário universalizado em São Pedro; ele anda sobre águas por graça de
Deus, enquanto burgueses se espantam por não poderem realizar a mágica;
isto é, aos humildes: a magia divina, aos prepotentes: a inveja. Esta
crônica poética também pode permitir que se compare a "apreensão do
mistério da palavra" nos poemas explícitos de Drummond diante desta
prosa poética; por exemplo: "minhas lembranças escorrem" (Sentimento do
mundo, estrofe 1, verso 4) e "feixes escorrem" (das mãos do operário, em
O operário no mar, linha 26). O mistério poético de lembranças escorrem
é bem mais profundo do que peixes escorrerem imaginariamente das mãos
do operário. Poema: Privilégio do mar No poema 12, o autor continua
detendo-se alegoricamente no problema social das diferenças humanas.
Poema: Inocentes do Lelbon Ainda no enfoque da visão social, o poeta
fala da riqueza: "inocentes" significa os que querem ignorar; por isto
fingem e se aproveitam. Poema: La possession du monde Neste poema 17,
Drummond indica o membro da Academia Francesa de Letras, em 1884,
Georges Duhamel, pedindo uma risível fruta estragada; como se isso
fosse, como diz o título do poema, ter o mundo nas mãos. Poema: Ode no
cinqüentenário do poeta brasileiro O belo elogio do poema 18 é a palavra
drummondiana a Manuel Bandeira, nascido em 1886 e que, em 1936,
completava 50 anos de vida. Drummond pede que "seu canto confidencial (a
poesia de Bandeira) ressoe acima dos vãos disfarces do homem"! E para
concluir esta fugaz visão do livro Sentimento do mundo, fiquemos com as
palavras do último poema, Noturno à janela do apartamento: " A vida na
escuridão absoluta, como líquido, circunda."