Em 1880, apenas
dois anos depois de O Primo Basílio, Eça vai dar a público O Mandarim -
uma novela fantástica, em cujo enredo tem participação decisiva uma
figura declaradamente romântica: o Diabo.
Numa carta ao editor da Revue Universelle, que serviu de
prefácio à publicação francesa da novela, Eça se mostrava bem consciente
da singularidade do livro face à tendência estética dominante: “tendes
aqui, meu Senhor, uma obra bem modesta e que se afasta consideravelmente
da corrente moderna da nossa literatura, que se tornou, nestes últimos
anos, analista e experimental”. Isso porque O Mandarim era “um conto
fantasista e fantástico, onde se vê ainda, como nos bons velhos tempos,
aparecer o diabo, embora vestindo sobrecasaca, e onde há ainda
fantasmas, embora com ótimas intenções psicológicas”. A percepção do
escritor é claríssima: apesar da atualização do ambiente da trama, o
enredo fabuloso, o gosto pronunciado do exotismo, a ausência de
interesse nos vários condicionalismos que determinam a ação dos
indivíduos e a intervenção do sobrenatural configuram um narrativo de
molde romântico, ou neo-romântico.
Nessa mesma carta, prosseguia Eça de Queiroz com uma frase que
vale a pena transcrever: “entretanto, justamente porque esta obra
pertence ao sonho e não à realidade, porque ela é inventada e não fruto
da observação, ela caracteriza fielmente, ao que me parece, a tendência
mais natural, mais espontânea do espírito português.” Pode ser que a
frase se aplique também ao espírito português, mas o que realmente
importa é observar que se aplica perfeitamente ao espírito do próprio
Eça, que, a partir de O Mandarim, vai abandonar progressivamente os
caminhos do Naturalismo e retomar algumas características que já se
encontravam nos seus primeiros textos: o gosto pelo exotismo das
paisagens e civilizações e o pendor alegórico e moralizante. São essas
características - centrais no texto de O Mandarim - que no final da vida
de Eça de Queiroz irão dar origem às impressionantes vidas de santos e
histórias de mistério.
Do ponto de vista da evolução literária de Eça de Queiroz, O
Mandarim representa, portanto, um momento de virada: aquele em que o
escritor abandona a “preocupação naturalista”, que, segundo o próprio
Eça, embora tivesse servido para lhe disciplinar o espírito, também “o
condenara a reprimir, muitas vezes sem vantagem, os seus ímpetos de
verdadeiro romântico que no fundo era”.
Determinado seu lugar na produção queiroziana, observemos
rapidamente essa obra singular. O Mandarim é antes um conto que uma
novela, pois sua trama se concentra à volta de uma só personagem e a
ação se reduz a um único acontecimento central, que implica todos os
desenvolvimentos posteriores. O registro genérico é o da farsa
moralizante, e o ponto de partida é um problema moral que era conhecido,
no século passado, como o “paradoxo do mandarim”. Formulado em 1802 por
Chateaubriand, consistia numa pergunta: se você pudesse, com um simples
desejo, matar um homem na China e herdar sua fortuna na Europa, com a
convicção sobrenatural que nunca ninguém descobriria, você formularia
esse desejo? Vários autores glosaram esse tema ao longo do século
passado, e o texto de Eça é talvez o seu último e mais literal
desenvolvimento.
Do ponto de vista da crítica moral, lendo O Mandarim percebemos
que há duas linhas independentes de desenvolvimento. A primeira é a
mais simples. Mostrando-nos que todos o tratam de acordo com o dinheiro
que possui, Teodoro nos vai apontar a hipocrisia que domina as relações
pessoais e sociais. A segunda é a mais complexa, porque envolve a
auto-representação do narrador. A idéia geral é a de que o crime não
compensa, independentemente de qualquer outra consideração. Como
ilustração desse princípio é que Teodoro narra aos seus leitores o seu
caso exemplar: ao longo do tempo, após o crime que lhe propicia a
riqueza, foi-se tornando infeliz, a tal ponto que o retorno à vida
rotineira e medíocre de hóspede pobre da pensão de d. Augusta chega a
parecer-lhe uma forma de conseguir alguma paz de espírito.
Do ponto de vista da estruturação da narrativa, há igualmente
duas observações a fazer. No que diz respeito à história da obra
queiroziana, talvez valha a pena lembrar que O Mandarim é a primeira
obra relativamente extensa escrita em primeira pessoa. Essa observação
pode reforçar o argumento, desenvolvido acima, de que o conto representa
um momento de rejeição do modelo naturalista, que propunha a narrativa
em terceira pessoa, mais adequada à análise objetiva. Já no que diz
respeito à história do tratamento literário do paradoxo, a novidade do
texto de Eça é a viagem à China. No seu texto, a China não é apenas o
lugar abstrato, incógnito e remoto, onde vive um homem desconhecido cuja
vida é destruída por um ocidental. Pelo contrário, ganha concretude e
responde por cerca de metade do número de páginas da história. Da mesma
forma que o Médio-Oriente em A Relíquia, a China é praticamente tudo em O
Mandarim. Mas a diferença é que, enquanto em A Relíquia, Eça descreve
um ambiente e civilização que observara pessoalmente, em O Mandarim nos
apresenta um lugar construído a partir de relatos de terceiros, de
leituras e, principalmente, pela livre imaginação. Daí, justamente, o
interesse da viagem de Teodoro, que nos conduz a uma China colorida,
bastante bizarra, em que encontramos uma espécie de súmula da visão
européia do que fosse o Extremo-Oriente.
Para o leitor de hoje, como para o de ontem, sem dúvida a parte
mais atraente de O Mandarim continua a ser a viagem chinesa. O resto do
conto tem um sabor conhecido e um registro genérico em que o desfecho é
bastante previsível. Assim, é mesmo a fantástica viagem ao Império do
Meio o que constitui o núcleo do texto e o mantém vivo e interessante. É
também a viagem que singulariza esse texto na literatura portuguesa do
final do século, fazendo dele um delicioso capítulo na história do
exotismo orientalista que percorreu toda a cultura européia da segunda
metade do século passado.