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Resumos / Material

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sábado, 21 de agosto de 2010

Tempo da Camisolinha - Mário de Andrade

Mário de Andrade, no conto "Tempo da Camisolinha ", da obra Contos Novos, assume um foco narrativo em primeira pessoa, com narrador participante, que, simultaneamente, é o protagonista da narrativa. A narrativa, por sua vez, é posterior aos fatos: o narrador adulto conta sua experiência infantil. Apesar de os fatos estarem distantes no tempo, estão próximos emocionalmente. Para contá-los, o narrador envolve-se tanto, que assume a linguagem da criança e expressa suas emoções e interrupções por meio de sinais de pontuação subjetivos, como reticências e exclamações: "(...) davam nela, machucavam muito ela, isto é ... muito eu não queria não, só um bocadinho, que machucassem um pouco, sem estragar a cara tão linda da pintura, só pra minha madrinha saber que agora que eu tinha a boa sorte, estava protegido e nem precisava mais dela, tó! ai que saudades das minhas estrelas-do-mar! (...)" "(...) eu bem não queria pensar, mas pensava sem querer, deslumbrado, mas a boa mesmo era a grandona perfeita, que havia de dar mais boa sorte pra aquele malvado de operário que viera, cachorro! dizer que estava com má sorte! Agora eu tinha que dar pra ele a minha grande, a minha sublime estrelona-do-mar!..." A apresentação do conflito não é a tradicional, já que, inicialmente, o narrador não parece ter a preocupação de situar o leitor no tempo e no espaço; não se preocupa em conduzir o texto para que o leitor o assimile de forma segura. "A feiúra dos cabelos cortados me fez mal.": tal colocação não conduz o leitor ao assunto diretamente. Posteriormente, saberemos que os "cabelos cortados" foram os dele. O narrador parte de suas próprias experiências; o corte dos cabelos trouxe-lhe uma "noção prematura de sordidez dos nossos atos" ou "da vida". A criança não queria seus cabelos cortados; isso lhe trouxe sofrimento, mas a justificativa recebida foi que deveria ficar homem. Isso, em vez de animá-lo, apavorava-o, pois uma criança de três anos não queria ser homem; queria ser apenas criança. É o iníicio, assim, de uma das abordagens contidas no texto: o pré-estabelecido, o convencional, as regras fundamentais, que devem ser sempre seguidas por alguém que deseja fazer, coerentemente, parte da estrutura social. É "sórdido", como nos coloca o narrador, um menino ter cabelos "dum negro quente, acastanhados nos reflexos", principalmente se "caíam pelos ombros em cachos gordos, com ritmos pesados de molas de espiral". A reflexão que nos fica é se o que é sórdido é a imposição, ou a delicadeza dos cachos... Tal fato se torna tão marcante, que, já homem, os cachos tornaram-se a lembrança de um "engano grave", que o fizeram destruir o quadro que ainda continha essa lembrança. No corte dos cabelos, não são apenas eles que são destruídos, mas o "olhar manso, um rosto sem marcas, franco, promessa de alma sem maldade". O que fica é o homem que acha "besta" a camisolinha conservada pela mãe para que economizasse. O adulto, que agora é, tenta-se justificar pelo que ele foi ("Guardo esta fotografia porque si ela não me perdoa do que tenho sido ao menos explica"). A criança, forçada a virar homem aos três anos, passa a ter um "quê repulsivo de anão". É nítida a comparação que faz entre ele e o irmão, Totó. O irmão mantém o ar sem malícia e infantil; parece não ter sofrido a repressão vivida pela personagem protagonista. Ao caracterizá-lo como "criança integral", reforça as perdas sofridas pelo narrador; nesse momento, a idéia dos cachos retorna à mente do leitor: o problema reforça-se como moral, não como físico; com os cabelos, perdeu-se a pureza. O personagem narrador - a "montruosidade insubordinada", revelada pelos "olhos que espreitam" - contrapõe-se ao irmão, "a própria imagem da infância". Num momento de "flash-back", o narrador reflete sobre o valor dos signos do passado ("não sei por que não destruí em tempo também essa fotografia"): é a forma de buscar-se e encontrar-se nas reminiscências. É como se fosse capaz de perceber que a foto era a comprovação da repressão e seus resultados: o que fazer diante disso? ... a sensação da incapacidade de reagir... Quando o leitor entra em contato com tudo isso, sente que os cachos cortados são ponto de partida do enredo. O fluxo de consciência vai tomando maior espaço à medida que incomoda o narrador. "Voltemos ao caso que é melhor": prefere interromper as reflexões a deparar-se, possivelmente, com o que não quer ver... Nessa repressão tão sofrida, o pai é elemento desencadeador de todo o processo: "meu pai suavemente murmurou uma daquelas suas decisões irrevogáveis". A antítese marca a introdução do pai no enredo - suave e irrevogável; nesse caso, a suavidade não se liga à delicadeza, mas ao fato de não haver discussão nas decisões por ele tomadas. A maior revolta do menino é não ter nenhuma participação nisso: "Deixassem que eu sentisse por mim, me incutissem aos poucos a necessidade de cortar os cabelos, nada: uma decisão à antiga, brutal, impiedosa, castigo sem culpa, primeiro convite às revoltas íntimas (...)". A reação do narrador é de "monstruosidade insubordinada", voltando-se contra o cabeleireiro; a dificuldade de lembrar é grande, já que a resistência a tudo isso se mantém até hoje ("Tudo o mais são memórias confusas ritmadas por gritos horríveis (...)"). A seleção de vocabulário é pesada porque a dor também é: "cadáveres de meus cabelos", "um não-conformismo navalhante"... e a reação do menino é de pranto. Nota-se que o que dói mais é a troca proposta pelos adultos: presentes, gozações, espelhos. Ninguém tenta entender a dor do garoto. Na relação indivíduo/mundo, a reação do indivíduo é a revolta: nasce o homem - como queriam os "outros" - mas é alguém "cheio de desilusões, de revoltas, fácil para todas as ruindades", com lembranças infantis desagradáveis, cujo único elemento restante foram "as camisolinhas", tão detestáveis quanto todo o resto. A figura paterna não afeta apenas o menino, mas também a mãe: depois de um parto desastroso, movia-se "premiada pelas obrigações da casa e dos filhos". A idéia de "obrigação" intensifica-se ao longo das ações dela ("menos tratava da casa que se iludia, consolada por cumprir a obrigação de tratar da casa."). A atitude do pai diante do sofrimento materno é exposta de forma irônica: "Diante da iminência de um desastre maior, papai fizera um esforço espantoso, o seu ser que só imaginava a existência no trabalho sem recreio, todo assombrado com os progressos financeiros que fazia e a subida de classe." Observa-se o antagonismo de interesses entre esses elementos do mesmo ciclo familiar: a criança, preocupada apenas com a própria dor (tal egocentrismo reflete-se, inclusive, nas reminiscências do narrador, que não consegue lembrar-se, exatamente, do que ocorria com sua mãe - "(...) não sei direito..." -; a mãe, preocupada com suas obrigações para com a família; o pai, preocupado com os "progressos financeiros e a subida de classe". O que vemos, portanto, é a família conservadora burguesa. Para melhorar o estado de saúde de sua mãe, vão para a praia. A mudança de espaço não mudará esse quadro familiar. Observa-se isso, por exemplo, no quadro de Nossa Senhora do Carmo (trazido da cidade para a praia), utilizado para ameaçar e amedrontar o menino ("Meu filho, não mostra isso, que feio! repare: sua madrinha está te olhando na parede!"). Diante disso, o menino não se submete, pois desafia a "madrinha santa", quando a mãe não está olhando ("Tó! que eu dizia, olhe! Olhe bem! Tó! olhe bastante mesmo!"). Nessa mudança de espaço, as poucas mudanças de atitudes são apenas aparentes: a mãe "sentia um prazer perdoável de representar naquelas férias o papel largado de convalescente"; o pai "deixara menos pai, um ótimo camarada com muita fome e condescendência". O que se nota é que pai e mãe precisam de motivos, "desculpas", para se comportarem de modo diferente, enquanto que o filho mantém sua personalidade rebelde, avessa ao formal. Os operários trabalhadores do canal reforçam a hierarquia que a criança já observava na família, já que tratavam melhor a ele, "filhinho de ‘seu dotô’, do que aos próprios filhos": como diz o próprio narrador, agiam "proletariamente"... Tudo isso se segue de um fato novo que modifica o ritmo do enredo: o garoto é presenteado com três estrelas-do-mar por um operário, que lhe diz que as mesmas dão boa sorte. A posse das estrelas-do-mar tornou-se algo fundamental para a criança: constituíam-se num segredo. Não sendo necessário dividi-las ou partilhá-las com alguém, tornam-se algo só seu, capaz de dar a boa sorte prometida e protegê-lo de qualquer infortúnio: "Comer? pra que comer? elas me davam tudo, me alimentavam, me davam licença para brincar no barro, e si Nossa Senhora, minha madrinha, quisesse se vingar daquilo que eu fizera pra ela, as estrelas me salvavam, davam nela (...)" Porém, a posse das estrelas é momentânea; a felicidade é momentânea. Ao ver, na praia, um operário triste, queixando-se da sua má sorte, a criança sente-se na obrigação de ceder-lhe sua estrela-do-mar (de início, a pequena, mas, depois, sabia que devia ceder a maior: "(...) aquele homem com tantos filhinhos pequenos e aquela mulher paralítica na cama!... e no entanto eu era feliz, feliz e com três estrelinhas-do-mar pra me darem sorte..."). Se, no início do conto, o embate da criança era com o mundo, agora, é consigo mesma, quando descobre que até dentro de si as coisas não são harmoniosas: ao mesmo tempo que deseja as estrelas, que quer as três - que, para ele, representam a suprema felicidade -, incomoda-se com o sofrimento do operário. Dolorosamente, acaba deixando sua vontade de lado e entrega-lhe a estrela: "Tome! Eu soluçava gritado, tome a minha... tome a minha estrela-do-mar! dá... dá, sim, boa sorte!...". Tal atitude não deixa - ao contrário do que se poderia esperar de uma narrativa moralista tradicional - o garoto satisfeito consigo mesmo, já que foi tão altruísta. O que ocorre, na verdade, é um imenso sofrimento, arrependimento ("eu sofria arrependido"), que ele não consegue conter: "Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama, abafando os soluços no travesseiro sozinho.". À sua maneira, a narrativa torna-se cíclica: o sofrimento vivido com a perda dos cachos castanhos retorna na perda da estrela-do-mar... é o homem que se forma através de perdas sucessivas, de sofrimentos contínuos, "no infinito dos sofrimentos humanos".
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Tarde da Noite - Luiz Vilela

"Nunca pude esquecer sua morte. Eu o vi, mas na hora não entendi tudo. Eu só vi o sangue. Tinha sangue por toda parte. O lençol estava vermelho. Tinha uma poça no chão. Tinha sangue até na parede. Nunca tinha visto tanto sangue. Nunca pensara que, uma pessoa se cortando, pudesse sair tanto sangue assim. Ele estava na cama e tinha uma faca enterrada no peito. Seu rosto eu não vi. Depois soube que ele tinha cortado os pulsos e aí cortado o pescoço e então enterrado a faca. Não sei como deu tempo de ele fazer isso tudo, mas o fato é que ele fez. Tudo isso. Como, eu não sei. Nem por quê."

Um Mundo Despoetizado

Os Contos de Tarde da Noite, de Luiz Vilela, em geral são breves, centrados em uns poucos personagens e uma única ação, e chegam a criar um início de expectativa sobre o desenvolvimento; aí, parecem estagnar-se em direção ao final, que nunca é algo muito inesperado. Ao contrário, os finais geralmente são o que se espera que aconteça, como a afirmar que a ruindade do mundo não comporta muitas surpresas; nada de muito diferente deve acontecer para quebrar a miséria dominante. Os personagens são meninos, meninas, jovens casais e casais não tão jovens e velhos, que transitam num mundo de perversidade, incompreensão, tédio, ostentação, dominação, medo, incerteza. A linguagem é coloquial, bastante direta, despojada, sem muitas surpresas também, com poucas imagens, a maioria comuns ou desgastadas. Pouca poesia para falar de um mundo despoetizado.

Impressões Infantis

O ponto de vista da criança predomina nos contos, como uma voz que tenta se opor ao sistema de opressão do grupo social, mas raramente consegue. Em "Lembrança", conto que abre o livro, o narrador volta a seu passado infantil e reencontra a figura do avô. O velho parecia um ser tranqüilo, de pouca conversa, as pessoas nem o notavam direito, em seu quartinho dos fundos. Sua vida passada, entretanto, havia sido recheada de perdas, abandonos, mortes. O que as pessoas viam como um velho distinto era um monte de amargura. Suicidou-se cortando os pulsos e o pescoço, e enterrando a faca no coração. Morte violenta para quem vivera na paz destroçada da perda. Sua aparência de limpo na mente do menino, entretanto, não fora maculada. Tanto sangue, para o menino, não era sujeira. Era diferente. Era o símbolo da limpeza que o velho precisava fazer em sua vida, a purificação que conduz à morte. A criança não consegue se manter imune às misérias da sociedade, como as que destruíram o avô do primeiro conto e as que se apresentam ao protagonista do conto "Aprendizado". Eduardo tirou nota máxima na redação e correu a casa para exibir com orgulho o texto ao pai e à mãe. Jordão e Grilo o abordam, dizendo que também querem ler o texto, e usam de todos os subterfúgios para que ele ceda. Ao ver sua redação rasgada pelos colegas invejosos, Eduardo tenta agredi-los, mas a reação de seus "semelhantes" promete ser muito mais violenta. O menino aparece como um ser humano frágil, inexperiente, que tem de aprender a duras penas como sobreviver em um mundo repleto de perversidade, que ofusca as pequenas vitórias pessoais. A arte de escrever exige um longo aprendizado. Conhecer as fraquezas e as maldades das pessoas também, desde a infância. Mais uma vez, o menino aparece como um ser humano frágil, inexperiente, que tem de aprender a duras penas como sobreviver em um mundo repleto de perversidade, que ofusca as pequenas vitórias pessoais. A incompreensão dos atos dos adultos também faz parte do sistema infantil. Em "Um peixe", o menino volta da pescaria no domingo. Os peixes estão mortos no tanque, apenas a traíra se mexe. Ela é separada dos demais, e "ressuscita" na pia com água limpa. O menino vibra com a ressurreição e vai à padaria comprar pão para sua nova cria, para a qual já havia feito planos para o futuro. Ao chegar a casa, constata que a empregada havia assassinado seu mascote, para fritar. O menino é o caçador de peixes por esporte, é o predador dos animais, mas tem afinidade com eles. Se um deles escapa, manda o código de honra infantil que ele seja preservado, por ter adquirido o direito a uma vida mais longa através da bravura. O adulto intrometido joga por terra a construção moral da criança. O mundo dos homens cansa. No conto "Suzana", os dois meninos combinam como é que vai ser a abordagem de Suzana, como é que eles vão fazer "aquilo" com ela. E se ela não deixar hoje? O medo é o velho aparecer. Tudo verificado, os meninos se aproximam e um deles se adianta: - Suzana - chamou, e a égua apareceu. Ainda na linha da relação da criança com os animais, os meninos aqui têm sua iniciação sexual proporcionada por um animal, um elemento puro, não contaminado pelas mazelas sociais: - Doença? Essa é boa; mais fácil a gente pear doença nela. Criança e animais produz outro conto, "As Formigas". O conforto do mundo desconfortável é dado ao menino ao conversar - e ser correspondido - com as formigas que fazem fila na parede saindo do rachado. Seu mundo de formigas é muito melhor do que o de homens: sem gritos, mentiras. E o perverso mundo dos homens é que se encarrega de destruir sua fantasia confortante: o pai cimenta o rachado por onde saíam as suas amigas. É o fim, a angústia, o bolo na garganta. Há também o menino levado e desaforado, que aprende rápido a se defender na selva social, em "Menino". Márcio é o protótipo do menino teimoso, não lava as mãos, não almoça direito, faz birra com a mãe dizendo que não vai à escola, manda o professor à merda, e fica de castigo. Chegando tarde a casa, a mãe o repreende e ele diz que ficou de castigo por ter respondido mal ao professor. Márcio pergunta à mãe se era mau menino; a mãe fica enternecida com o filhinho levadinho e responde que não. O menino correu e saltou na quina da banheira. - Striknik! Striknik! A temática do conto é a relação entre mãe e filho; ela briga todo o tempo com o menino, tenta conter seu espírito inquieto, mas o ama, e engole apertado quando ele diz que se julga um mau menino. A menina que tem medo aparece em "Os mortos que não morreram". Há aí uma mistura de impressões infantis sobre uma rachadura no teto, que se lhe afigura o rasto de um bicho, e diálogos de adultos. O tema das conversas dos homens e mulheres é a ameaça que paira sobre os animais, com efeitos piores sobre o animal homem, que é consciente disso e tem seu maior fator de sofrimento na memória, onde habitam os mortos que não morreram. Dois dos homens trocam ironias e sarcasmos, um deles tenta seduzir a esposa de um terceiro, na cozinha. Em seu retorno, discute-se a permissividade e a moral. Lá dentro, a menina chorava, assustada com o bicho que riscou a parede. O ser humano, seja criança ou adulto, vive num mundo de medo, incerteza, desavenças e seduções. O saber, ou a aparência dele, é uma forma de poder, que provoca admiração ou inveja, e prepotência daquele que julga possuí-lo. Os mortos que não morreram são, portanto, todas as misérias que compõem a vida do homem, e sem as quais ele não consegue sobreviver. A falsa autoridade das instituições dos adultos também contamina as crianças. "Com seus próprios olhos" tem uma estrutura dialógica, em que o diretor da escola faz perguntas incessantes ao menino Ivo, que havia presenciado na noite anterior uma cena de sedução entre o distinto diretor e outro menino. O diretor conta com a discrição de Ivo para que ninguém saiba do ocorrido, que seria um escândalo. É a temática do abuso de poder, da falsa aparência de probidade e respeitabilidade. As ações das pessoas desmentem o que sua superfície aparenta, e de repente toda a consideração que o mundo social tem pela nobreza do cargo de diretor fica na dependência de um menino frágil e humilde. Outra forma de abuso de autoridade que a criança ou o jovem não quer aceitar aparece em "O professor de inglês". O professor corresponde à tradicional caricatura do mestre autoritário, com cara de rato, cabelos ralos na cabeça. O professor pune com notas baixas, ameaça com reprovação, humilha os alunos, responde mal a todos. Os alunos não têm nome; apenas números. O aluno novato indigna-se com a postura do professor, e pergunta a um colega por que é que eles não reclamam dele. Para a escola, o professor sabe o conteúdo e dá aulas, portanto não há motivo para tirá-lo. O aluno novato, mais sensível, afirma que esse sistema é horrível, e, diante da afirmação do colega de que um dia ele iria é achar graça da situação, ele se torna grave e declara: - Nunca vou achar graça disso, nem vou esquecer. Nunca vou esquecer disso. A temática do conto é o autoritarismo do sistema escolar, representado pelo professor de inglês. O sistema é fechado, de absoluta dominação, e as pessoas normais devem-se sujeitar a ela, para, talvez, até acharem graça posteriormente. A exceção é o personagem Carlos, que não pensa como os outros.

Expectativas Nulas
A visão do adolescente, ou do jovem adulto, também transmite perplexidade, ou desesperança, ou amargo conformismo. O título de "A pátria precisa de você" ironiza o apelo patriótico do cartaz que leva os adolescentes a imaginarem que serão bem-vindos ao exército (que se auto-intitula "pátria"), já que eles constituem o elemento necessário lá. Entretanto, o grupo de jovens que se apresenta "para servir a pátria" sofre maus tratos e ofensas dos representantes da lei. O autoritarismo e a prepotência do militares no pequeno tempo de convivência do adolescente narrador naquele lugar dão a ele uma grande sensação de liberdade quando terminam aqueles momentos de opressão e ele afinal pode seguir para casa. O adolescente tem suas carências, que precisam ser refreadas. "Uma namorada" era tudo de que o narrador não precisava, até que seu chefe, o doutor, lembrou-lhe de que isso existia no Dia dos Namorados. Foi aí que as noites se tornaram um problema. Até então suas noites, após um dia de trabalho dedicado e comprometido, se resumiam às idas ao cinema e um copo de leite. O próprio cinema começa então a despertá-lo para a existência de namorados e namoradas. Sua primeira tentativa de namorar revela-se, entretanto, tão desastrada, que ele tenta o suicídio. É salvo pela perícia do motorista do ônibus. Com persistência, consegue "curar-se" do desejo de ter uma namorada e sua vida volta a ser como antes. A temática desse conto é a da adolescência morta pela mecanização do trabalho e a solidão. Se se exige do homem esse tipo de vida, ele tem que corresponder a ela, e "curar-se" de qualquer desvio do que se espera dele como pessoa: funcionário exemplar e pessoa "normal". Pobreza e solidão, dois fortes motivos para depressão, que não pode ser evitada nem pela juventude dos vinte anos. A vida é triste, amarga, só resta entregar-se à dor. "Num Sábado" contém uma temática análoga. O rapaz pobre que trabalha duro a semana inteira sai pela manhã de sábado, toma uns chopes, volta para casa à tarde, dorme para esquecer a tarde, acorda, come pão e veste um terno. Termina por não sair, e fica pensando em si mesmo, em sua pobreza e solidão, e tem vontade de morrer. Pobreza e solidão, dois fortes motivos para depressão, que não pode ser evitada nem pela juventude dos vinte anos. A vida é triste, amarga, só resta entregar-se à dor. Outro suicídio não perpetrado aparece em "O Suicida". Alguém anunciou numa rádio que iria pular do alto de determinado prédio às dezessete horas. Nesse contexto desenvolve-se a narrativa. O infortúnio de uma hipotética pessoa que se atira do alto de um poço profundo transforma-se em espetáculo para os devoradores de emoções fortes. Tenta-se descobrir a causa da tentativa de suicídio, discutem-se outros casos de suicídio. Um pedreiro que trabalhava no alto põe uma perna para fora da janela e é vaiado, torcem para que ele caia. Ao final, o anunciado suicida nem aparece, e todos acabam se retirando tristes e decepcionados, exceto um dos estudantes, que ganhara a aposta de que não haveria suicídio. Para os espectadores, o espetáculo da morte alimenta a vida, produz emoções, salvar uma vida é perder um espetáculo que faz correr adrenalina. É a perversidade do ser humano, que precisa da desgraça alheia para alimentar uns instantes de vida fora da rotina.
Amor Cansado
A temática amorosa confirma a negatividade geral, como em "Amor": fim de tarde, cansaço, proximidade de fim de namoro. Ele não consegue prestar atenção nos sapatos que ela admira na vitrine. Ela se impacienta com o alheamento dele, diz que ele está ríspido, nervoso, uma pilha, e que não tem mais amor a ela. Após um grande silêncio, ela propõe terminar, ele não acha que é o caso, ela entra no ônibus, ele pergunta se é para telefonar, ela deixa por conta dele. O amor se apresenta como aquela rotina cansativa da cidade; precisa-se dele, mas ele não dá completa satisfação. E as pessoas continuam a chamar isso de amor: Ele ficou vendo o ônibus se distanciar pela avenida, o rosto abatido, pensando por que o amor era tão difícil. "Ousadia" é o que o marido tentou para quebrar o cansaço da relação, mas não conseguiu ir adiante. Marido e mulher deitados para dormir, ela quase dormindo, ele tentando conversar com ela cheio de evasivas, buscando concretizar uma proposta de alguma coisa ousada, provavelmente de natureza sexual, em suas vidas. Uma troca de casais, talvez? Ménage a trois? O máximo que ela consegue entender é que ele queria fazer amor, mas o dispensa, dizendo-se muito cansada. Não há bons sentimentos que resistam a um amor cansado, ou a um amor igual a todos os amores com todas as pessoas, em todos os casos sem esperanças. É a infalibilidade da banda podre. A rotina da vida de casado chega a momentos em que a pessoa quer tentar qualquer coisa para afastar a monotonia. As leis sociais são, entretanto, muito rígidas, e amarram as pessoas aos "bons costumes". Qualquer ousadia maior, qualquer ruptura com o sistema tem que ser muito bem considerado, pelo risco de execração social. Muitas vezes, é melhor deixar a ousadia permanecer no plano ideal do que concretizá-la. É mais cômodo e distinto. Tanto no fim da tarde, quanto à noite, ou "Ao Nascer do Dia", não há bons sentimentos que resistam a um amor cansado, ou a um amor igual a todos os amores com todas as pessoas, em todos os casos sem esperanças. É a infalibilidade da banda podre. E as pessoas têm de se conformar de que tudo seja assim. Não há a quem recorrer. O conto "Tarde da noite" repete o tema do casamento cansado numa situação insólita. O casal está na cama, e uma desconhecida telefona. Alguém querendo conversar discou um número a esmo, chega a falar em suicídio, e a conversa se prolonga. O marido cansado de ser casado se sente seduzido por aquela voz, e transforma o telefonema numa emocionante aventura extra-conjugal. Depois de um longo diálogo, a moça finalmente desliga, e o marido cansado continua sonhando com a possibilidade da aventura. Em "Esse Amor Besta de Inicial Maiúscula", há uma tentativa de amar diferente. Marcos, de namorada recente, encontra-se com um amigo de velhos tempos. Os dois têm uma concepção bem diferente de amor. O amigo considera-se mais realista, mais maduro. As mulheres são avançadas em assuntos sexuais, desacreditam o amor besta de inicial maiúscula, o que importa é o império do corpo, os sentidos. Mulher é sexo, carne, desejo, amor animal. O outro pensamento, representado por Marcos, é considerado pelo amigo como romântico no mau sentido, doença mental, coisa anacrônica e ingênua. Ao final um ônibus que ia passando esmaga uma coisa que Marcos trazia dentro de um embrulhinho: uma flor que ele ia levando para a namorada. O amigo de Marcos é o que tem voz mais atuante, é o mais articulado, o mais expansivo, é o que representa os que se impõem pela pose, os que se passam por conhecedores perfeitos do mundo, o mundo dos espertos, dos que sabem viver a vida. Marcos participa de um mundo mais humilde, que acredita no amor, mas que tem que conviver com o outro mundo e tolerá-lo.
A Paz Destroçada
A velhice é retomada em "Os sobreviventes". Neste conto predomina o diálogo entre dois homens em torno de cinqüenta anos, a fala dos dois é que conduz o desenrolar dos acontecimentos. Encontrando-se depois de mais de vinte anos num bar que freqüentavam quando jovens, vão tentando lembrar-se dos personagens que povoaram o tempo de sua juventude, mais precisamente o espaço daquele bar. Afonso é o mais melancólico, o mais saudoso dos bons tempos, e também o mais pessimista, o que lhe vale uma repreensão de Brandão. Afonso reclama que seu fígado já não lhe permite beber como na mocidade, e declara sua imensa e velha amizade ao colega, que retribui. Brandão destila sua amargura contra a juventude - barulhentos, afeminados -; Afonso agora é quem contemporiza. Num determinado momento, Brandão resolve alterar com uns rapazes que ele supunha estarem rindo dele na mesa ao lado. A provocação resulta numa briga dele com um dos moços, que lhe esmurra a cara. Embriagado, humilhado e com o nariz escorrendo, Brandão sai amparado pelo amigo Afonso. O conto aborda a temática do envelhecer, que impede as pessoas de quererem fazer o que faziam na juventude. Em confronto com aquela mesma juventude que lhes pertencera outrora, os mais velhos se tornam impotentes e se retiram, mesmo contra a vontade. Enfoque semelhante da velhice ocorre em "Bárbaro". Dois jovens em um quarto, um tenta ler e o outro quer por força contar a festa a que ele tinha ido. Numa linguagem cheia de gírias, palavrões e lugares-comuns, conta como ele e seus amigos se vingaram de um velho de cinqüenta e cinco anos que os havia convidado a uma festa "quadrada". A vingança foi arquitetada e perpetrada pelo Luquinha, que ridicularizou o homem, embebedou-o e quase fez com que ele se despisse diante de todos, à guisa de strip tease. Luquinha e os amigos representam a juventude entediada que não respeita os velhos, julgando-se superiores a eles. Aquilo para eles não fora nada de mais, uma brincadeirinha inocente, pois eles nem enrabaram o velho ou qualquer troço assim. o interlocutor do sujeito que conta o caso tenta voltar a concentrar-se em seu livro, e é considerado estranho pelo amigo Nem todos os jovens, entretanto, desprezam a velhice. Em "Luz sob a porta", Nelson está numa festa de jovens da classe média pseudo-intelectualizada, que discute Kafka, faz que lê Sartre e ouve os Beatles. Nelson precisa deixar a festa para visitar a mãe, que aniversaria. Por isso é motivo de chacotas dos amigos e amigas. Embora pressionado, ele insiste e vai, por volta de meia noite. Havia luz sob a porta, ela estava esperando-o. Na casa da mãe, fica sabendo que ela não recebeu nenhuma visita naquele dia. Dulce não foi, nem Rubens, nem Álvaro, nem ninguém. A mãe se emociona, e chora baixinho, de medo da velhice, da solidão. O conto é mais um pequeno drama da miséria humana. Como várias outras dessas pequenas narrativas, este não tem propriamente um final, mas algo como uma interrupção, ou suspensão. Não há nenhum suspiro de alívio nem grande emoção com o desfecho, apenas a triste constatação de que a velhice é assim mesmo. Mas agora não chore mais. "Preocupações de uma velhinha": ela tem medo da guerra, não entende bem o porquê de povos se matarem, e faz várias perguntas ao filho, embora saiba que os mais novos não gostam de ficar explicando coisas para gente velha; ela, entretanto, não resiste às perguntas. Cidinho, o netinho maior, ameaça puxar o gatilho da arma que fará a avó desaparecer, e ela roga que ele não o faça. Ele puxa o gatilho e nada acontece. O susto é grande, a velhinha começa a chorar. O tema da velhice aparece novamente cercado de conotações negativas. A velha é quem não compreende o mundo, não é compreendida pelas pessoas, possui uma ingenuidade indesejável, pior do que as crianças, mas cuja pureza não é admirada por ninguém. Até a criança, o neto Cidinho, portador de uma certa perversidade, é mais esperto que ela; era boba mesmo, era boba.
Outras Frustrações
Há alguns outros contos que abordam outros assuntos, que terminam sempre por convergir para o mesmo ponto de vista da frustração, da insatisfação, da despoetização. Em "Subir na vida", Vicente é professor, e o amigo Domício quer convencê-lo a largar a miséria do magistério e ser seu sócio em um empreendimento. Vicente resiste, embora, segundo Domício, a própria esposa do primeiro já houvesse reclamado. O professor é descrito como uma pessoa abnegada, de bom coração, corajoso. Domício, entretanto, acha - e diz ao amigo - que abnegação em excesso vira imbecilidade. Domício havia ido à casa de Vicente aquela tarde, e tinha estado com a esposa dele, a quem achou com cara de preocupada com a situação do marido. Após toda aquela pressão para que ele abandonasse a carreira de professor primário, ele vai à escola e, ao voltar a casa, declara à esposa que resolveu aceitar a oferta de parceria do amigo, e que ia pedir demissão da escola. Em seguida, vai ao bar telefonar para o amigo comunicando a decisão. Depois do telefonema, ele pede uma pinga, ele que nunca havia bebido. As poucas esperanças que a vida proporciona estão nas remotas possibilidades de transgressão, como a loucura, a poesia, o amor sincero, a pureza, a fantasia. Essas transgressões, entretanto, são tentativas efêmeras e impotentes diante da máquina de perversidade que movimenta as relações entre as pessoas. A abnegação e a paixão pelo ensino são vistos aqui como fraqueza; ajudar os outros, no entender da classe média emergente, não faz ninguém feliz. Se deixar o magistério é subir na vida, o personagem pretende deixá-lo, para dedicar-se a algo de novo. Fica também a sugestão de que embriagar-se é tão algo de novo como ingressar no consumismo; são fraquezas equivalentes. A loucura poética de "Françoise" é um momento de reação à sociedade: um observador sentado num banco de rodoviária vê uma loura bonitinha, ele jura que ela está esperando alguém. Ela acaba sentando-se no banco e puxa conversa com ele, diz que tem vontade de ir a Lindóia, por causa de uma música que ouvia quando criança, e gosta de ficar na rodoviária vendo as pessoas irem e virem, desculpa-se por estar incomodando. Ela lhe pede uma fumadinha, diz que os olhos dele são belos, depois fica falando sobre o sexo das frutas. O irmão da moça órfã é um poeta, o tio dono de bar reprova. ela fala sobre palavras bonitas e palavras feias. Palavras são como gente, tem de todo jeito: bonitas, feias gordas, magras, simpáticas, antipáticas, sérias, alegres, engraçadas, alegres, tristes; todo jeito. Ela compara os poetas a loucos, se diz uma solitária, uma esquisita. Logo tem um ataque de choro e volta repentinamente ao "normal". O tio aparece e interpela o observador. Ele não quer que a sobrinha converse com estranhos, principalmente porque ela é mentalmente perturbada, acha que o irmão que morreu está viajando. A menina e o tio vão embora e o observador levanta-se para ir embora, segurando a corrente que margeava o passeio. O tema explorado é a loucura, que é apresentada com uma aura de romantismo, de poesia. A menina Françoise é um ser que tenta superar a dor do acidente em que perdeu o irmão evadindo-se da realidade. "Felicidade" apresenta o contraste entre o que se convencionou ser feliz e o que as pessoas realmente desejam. O infeliz aniversário é uma camisa de força, de sorrisos forçados, piadas forçadas, discursos idem. O único momento feliz é proporcionado pela ida ao banheiro, que traz minutos de sossego. Esse é o mundo amargo apresentado nos contos de Vilela. As poucas esperanças que a vida proporciona estão nas remotas possibilidades de transgressão de um sistema opressor e fortemente estabelecido, como a loucura, a poesia, o amor sincero, a pureza, a fantasia. Essas transgressões, entretanto, são tentativas efêmeras e impotentes diante da máquina de perversidade que movimenta as relações entre as pessoas.
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Sorrisos Meio Sacanas - Sergio da Costa Ramos

Relatos sobre o cotidiano selecionados de 1994 a 1996, sobre os mais diferentes temas, desde as armações políticas, as gafes de personagens conhecidos do grande público: o leitor, a dona de casa, o ministro, o presidente ou Mike Tyson são ironizados. Trecho Portuguesal = "Presidenciável já não corresponde à modernidade dos tempos. Acho presidenciário muito mais adequado. Já vem com uma vantagem: rima com presidiário.
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Sonetos - Luís de Camões

Os sonetos de Camões contém um grande lirismo, descrevem bem o ambiente, grande preocupação técnica e presença de elementos pagãos e católicos. Quanto ao lirismo, sua Dinamene é elevada as alturas em sua perfeição (o amor, assim como a mulher, é extremamente idealizado). A técnica dos sonetos é impressionante, são os 14 versos de todos os sonetos (2 quartetos, 2 tercetos) decassílabos, de rima abba-abba-cde-cde, algo que impressionaria o mais parnasiano dos poetas. Quanto aos elementos pagãos, mais presentes que os católicos, deve-se apontar que é muito comum o autor citar os deuses e deusas romanos, com suas qualidades. Infelizmente é difícil se ter certeza de que ele escreveu todos os sonetos que a ele são atribuídos. Muitos ainda tem a autoria contestada.
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Solo de Clarineta - Érico Veríssimo

Solo de Clarineta é dividido em dois volumes. No primeiro Veríssimo conta e sua infância e adolescência até a idade adulta quando abandona o cargo na UPA e sua filha Clarissa casa-se com o físico americano David Jaffe. Na segunda, após relatar o nascimento de seus três netos e o escrever de O Arquipélago (e o primeiro dos ataques cardíacos), Érico começa a contar sua viagens. A primeira é a viagem a Grécia. Depois conta sobre O Senhor Embaixador e então… Portugal! Veríssimo era apaixonado pelo país e conta de seu tour pelo país em 1959 junto com a esposa Mafalda , seu editor e seu filho Luís Fernando. Infelizmente Érico morreu antes de concluir este volume e iniciar o terceiro, mas sobra ainda uma segunda parte deste segundo volume, contando sobre a Holanda, a Espanha e um colóquio entre ele e o homem no espelho onde analisa a si mesmo, sua obra, suas opiniões e sua autobiografia: o que ele nos deu foi "não um concerto de jazz ou uma grande peça sinfônica, mas um solo de clarineta."
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segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Sermão da Sexagésima - Padre Antônio Vieira

O Sermão da Sexagésima foi um dos mais famosos, entre tantos. Foi proferido na Capela real de Lisboa em março de 1655. Através dele, o pregador esmerou-se na retórica, contando com sua memória prodigiosa e rara habilidade no domínio da palavra.

As palavras de Vieira transformaram-no em um orador digno de fé e despertavam nos ouvintes uma paixão transformadora.

O sermão é um todo de 10 pequenos capítulos e é considerado seu mais importante sermão: uma crítica monumental ao estilo barroco, sobretudo ao Cultismo. Como foi pregado na Capela Real, em Portugal, podemos concluir que o auditório era particular, composto por católicos da nobreza portuguesa da época. O autor procura se aproximar do auditório dirigindo-lhe perguntas que ele mesmo, o autor, responde. O autor procurou no sermão a adesão do auditório à sua tese principal de que se não havia conversões em massa ao catolicismo na sua época era por culpa dos pregadores de então.

O tema do Sermão da Sexagésima é a “Parábola do semeador”, tirada do Evangelho segundo São Lucas: Semen est verbum Dei (A semente é a palavra de Deus). Neste sermão, o Padre Vieira usa de uma metáfora: pregar é como semear. Vieira resume e comenta a parábola: um semeador semeou as sementes que caíram pelo caminho, pelas pedras ou entre os espinhos. Apenas parte delas caiu em terra boa. Nele Vieira usa de uma metáfora: pregar é como semear. Traçando paralelos entre a parábola bíblica sobre o semeador que semeou nas pedras, nos espinhos (onde o trigo frutificou e morreu), na estrada (onde não frutificou) e na terra (que deu frutos), Vieira critica o estilo de outros pregadores contemporâneos seus (e que muito bem caberia em políticos atuais), que pregavam mal, sobre vários assuntos ao mesmo tempo (o que resultava em pregar em nenhum), ineficazmente e agradavam aos homens ao invés de pregar servindo a Deus. Vieira examina a culpa do pregador, considerando sua pessoa, sua ciência, a matéria e o estilo de seus sermões e sua voz.

No Sermão, seu autor interessava saber o motivo de a pregação católica estar surtindo pouco efeito entre os cristãos. Sendo a palavra de Deus tão eficaz e tão poderosa, pergunta ele, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Depois de muito argumentar, Vieira conclui que a culpa é dos próprios padres. Eles pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus, afirma. Dito de outra maneira, o jesuíta reclama daqueles que torcem o texto da Bíblia para defender interesses mundanos. No sermão proferido, o Padre também procura criticar a outra facção do Barroco, logo a utilizar o púlpito como tribuna política.

Padre Antônio Vieira, um mestre da persuasão, ensinava que “o sermão há de ser duma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria”. É a regra daunidade do discurso persuasivo.

Pe. Antonio Vieira empregava diversos elementos de retórica no sermão analisado e podemos afirmar que sua palavra produziu muito fruto, visto que sua obra se mantêm como pensamento válido depois de 300 anos de sua morte.

O assunto básico do sermão, à primeira vista, é a discussão de como é utilizada a palavra de Cristo pelos pregadores. Um olhar mais profundo mostra que o autor vai além do objetivo da catequese, adotando atitude crítica da codificação da palavra. Percebe-se, também, que o Sermão é usado como instrumento de ataque contra a outra facção do Barroco, representada pelos chamados cultistas ou gongóricos.
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Serafim Ponte Grande - Oswald Andrade

Composto entre l925 e 1929 e publicado em 1933, Serafim Ponte Grande, junto a Memórias Sentimentais de João Miramar, constituem os maiores romances de invenção de Oswald de Andrade. Tudo neste texto representa um desafio ao leitor; uma história dif'ícil de ser acompanhada; em vez de capítulos, 203 fragmentos organizados dos mais diversos modos; um herói que se confunde com outra personagem; personagens que repentinamente são eliminadas do texto e que depois reaparecem. Também do ponto de vista do estilo, não há um dominador comum ; passamos- sem motivo aparente - de narração em primeira pessoa para a narração em terceira ; cartas se misturam e diários ( íntimos; textos melodramáticos aparecem organizados sob forma de texto teatral., poemas pau-brasil, abaixo- assinados um dicionário de bolso que não ultrapassa a letra L , diários de viagem etc...
Apesar de aparente desordem, o romance apresenta uma estrutura que permite defini-lo como um livro de memórias dividido em onze partes ou capítulos agrupados em três partes:
PRIMEIRA: etapa de formação, apresentando a infância, adolescência, o casamento com Dona Lalá, a sátira à Revolução de São Paulo, em 1924 . O erotismo erreverente é nota constante.
SEGUNDA - viagens e aventuras pela Europa e Oriente.
TERCEIRA : o retorno e viagem utópica. Serafim ataca o quartel da polícia, a imprensa e o serviço sanitário. Perseguido , é fulminado por um raio. Pinto Calçudo, secretário de Serafim, se apossa do navio. "El Durasno", e funda a sociedade utópica, composta por ele e os tripulantes do navio, empreendendo umja viagem permanente.
Serafim Ponte Grande encarna o mito de herói latino - americano individual,, remando contra a corrente, procurando romper as cadeias do conformismo e da hipocrisia burguesa a golpes de ironia e sarcasmo. Mas o sonho de Serafim, por ser individual, acaba frustrando-se tragicamente, atirando o "herói" à marginalidade e amargura.
TEXTOS
PRIMEIRO CONTATO DE SERAFIM COM A MALÍCIA A - e- i- o - u Ba- Be -Bi - Bo- Bu Ca - Ce - Ci - Co - Cu
PROPICIAÇÃO
Eu fui o maior onanista de meu tempo
Todas as mulheres
Dormiram em minha cama
Principalmente cozinheira
E cançonetista inglesa
Hoje cresci
As mulheres fugiram
Mas tu vieste
Trazendo-me todas no teu corpo.
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Senhora - José de Alencar

A obra relata a dramática história de amor entre Seixas e Aurélia. Seixas era um pobre mancebo, que trablhava como jornalista, vivia na pobreza, mas não abria mão do outro lado da sua vida, com o qual gastava todo o seu ordenado : as festas da sociedade. Aurélia também era uma pobre moça, mas que subira na vida após herdar a fortuna de seu avô fazendeiroEra uma moça belíssima. Aurélia e Seixas iam se casar, mas esse casamento não ocorreu porque Seixas sabia que era pobre, e sabia que não era o homem certo para Aurélia, apesar de amá-la. Esse relacionamento se desfez quando o pai de Adelaide de Amaral aferece um dote para que ele se casasse com sua filha., e ele aceita. Algum tempo depois de receber a herança, Aurélia decide que quer se casar , e resolve "comprar" um. O escolhido, no entanto, era Seixas, que aceitara submeter-se ao casamento, mesmo sem saber quem era a noiva, pois tinha necessidade do dote. Logo após o casamento, Aurélia deixa bem claro que Seixas era um marido comprado, e que o que estava se passando era um casamento de conveniência. Apesar dos dois, de certa forma, amarem-se, nenhum dois dois demonstrava. O casamento foi marcado por rotineira e seca. Seixas, muitas vezes sentiu-se humilhado po Aurélia. Onze meses após o casamento, Seixas consegue o dinheiro de que precisava para desfazer o casamento, e isso que ele faz. No momento em que Seixas vai se despedir de Aurélia, já separados, Aurélia confessa que o ama de verdade, e suplica pelo o amor dele. Aurélia consegue provar esse amor, e conquista Seixas, mesmo ele achando que a riqueza dela havia destruído o amor dos dois.
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Saga - Érico Veríssimo

Segunda Fase do Modernismo. Saga tem como subtítulo "Um Testemunho Humanista", é narrado em primeira pessoa e é dividido em quatro partes. "Círculo de giz" é a primeira das quatro partes ; mostra Vasco Bruno, o personagem principal, ao chegar na Espanha durante a Guerra Civil para lutar nas forças governistas contra as do general Francisco Franco (que se tornou, após vencer esta guerra, um dos mais cruéis ditadores da história e colaborou com Hitler na segunda Guerra) na Brigada Internacional.

Vasco vai treinando para se tornar um guerreiro apesar de abominar a violência e vai conhecendo amigos: o chileno Garcia, obcecado por Cervantes, a quem passa a abominar de certo modo após constatar um certo sadismo; Axel, o escandinavo muitas vezes avesso às mulheres que acaba morto e mutilado na sua frente, que diz a frase que inspirou o título do livro: "a vida é a mais estranha de todas as sagas"; DeNicola, o sargento experiente que tanto os ensinou; Green, o americano que torrou sua fortuna e lutava com coragem e acabou fuzilado por tentar reunir uma fuga; Brown, o negro do Sul dos Estados Unidos que tinha pensamentos estranhos sobre a morte e agonizou lentamente na última batalha de Vasco; Pepino, o palhaço sem graça que é fuzilado por violar uma menina catalã.

Vasco é ferido duas vezes: na primeira vez um tiro na perna sem muita gravidade o deixa em Barcelona, onde conhece uma jovem desconhecida chamada Juana com quem tem o caso e nunca mais vê; na segunda, durante a batalha onde morre Sebastian Brown, é ferido na perna e no pulmão. Após este último conhece um doutor e, assim como na última vez que esteve num hospital, sente saudades ainda mais fortes de casa. Por fim não volta ao fronte e fica a ajudar pessoas que sofrem com a guerra em Barcelona. Por toda esta parte da história Vasco, um artista (pintor) avesso a violência, sente saudades de casa e de sua amada Clarissa, o horror à guerra (retratada com muito realismo), observa tipos humanos, filosofa sobre a miséria, sente a morte perto e percebe que, apesar de ter pulado o círculo de giz (ele se sentia como um peru que, preso a um círculo de giz, sente-se irremediavelmente preso) que o prendia, caiu apenas dentro de outro.

A segunda parte, "Sórdido Interlúdio", é um único capítulo relatando a estada de Vasco Bruno no campo de concentração de Argelès-sur-Mer, em meio a espanhóis e estrangeiros, numa miséria e sofrimento que faz os vivos invejarem os mortos. Vasco pena neste campo até que é chamado pelo alto-falante, no fim do capítulo. "O Destino bate à porta" é a terceira parte. Narrado por Vasco assim como todas as outras partes, mostra sua chegada a Porto Alegre no começo de 1939 (onde é questionado pelas autoridades por suspeita de comunismo) e o reencontro com Clarissa. Vasco reencontra velhos conhecidos: Fernanda, Noel, Seixas e Pedrinho. Fernanda, casada com Noel, recebeu uma herança logo antes de Vasco partir para a Espanha e fundou uma revista infantil, um hospital infantil e alugou um cinema.

Seixas é o velho médico da família que morre semanas após a chegada de Vasco. Pedrinho é o irmão de Fernanda, preso num casamento infeliz, que parasita a irmã assim como a família da esposa, tão infiel quanto ele. Acaba assassinado pelo amante da esposa após provocar briga. A partir de certo ponto desta parte Vasco passa a narrar tudo sob a forma de diário, aparecendo então o tempo entre 16/05/1939 a 21/10/1939 cronologicamente mais exato. Vasco sente os fantasmas da Guerra, as mudanças que passou nela, uma opressão da vida na cidade e de seus cidadãos, as disputas mercantilistas (Almiro Cambará, rival de Fernanda nos cinemas, a ataca baixamente em seu jornal; Vasco e ele brigam) e uma vontade de voltar à vida simples com contato com a terra como seu vizinho de cama no hospital de Barcelona havia sugerido. No final Vasco casa-se com Clarissa e decide ficar na chácara de campo de Fernanda. "Pastoral", estruturado como "Sórdido Interlúdio", é o exato oposto daquela parte: a vida de Vasco com Clarissa no campo, felizes, ela grávida, ambos a sonhar com um mundo melhor.
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quarta-feira, 4 de agosto de 2010

São Bernardo - Graciliano Ramos

Este é, sem dúvida, um dos romances mais densos da literatura brasileira. Uma das obras-primas de Graciliano , é narrado em primeira pessoa por Paulo Honório , que se propõem a contar sua dura vida em retrospectiva, de guia de cego a proprietário da Fazenda São Bernardo. Ele sente uma estranha necessidade de escrever, numa tentativa de compreender, pelas palavras, não só os fatos de sua vida como também a esposa, suas atitudes e seu modo de ver o mundo. A linguagem é seca e reduzida ao essencial. Paulo Honório narra a difícil infância, da qual pouco se lembra excetuando o cego de que foi guia e a preta velha que o acolheu. Chegou a ser preso por esfaquear João Fagundes por causa de uma antiga amante. Possuidor de fino tato para negócios, viveu de pequenos biscates pelo sertão até se aproveitar das fraquezas de Luís Padilha - jogador compulsivo. Comprou-lhe a fazenda São Bernardo onde trabalhara anos antes. Astucioso, desonesto, não hesitando em amedrontar ou corromper para conseguir o que deseja, vê tudo e todos como objetos, cujo único valor é o lucro que deles possa obter. Trava um embate com o vizinho Mendonça, antigo inimigo dos Padilhas , por demarcação de terra. Mendonça estava avançando suas terras em cima de São Bernardo. Logo depois, Mendonça é morto enquanto Honório está na cidade conversando com Padre Silveira sobre a construção de uma capela na sua fazenda. São Bernardo vive um período de progresso. Diversificam-se as criações, invade terras vizinhas, constrói açude e a capela. Ergue uma escola em vista de obter favores do Governador. Chama Padilha para ser professor. Estando a fazendo prosperando, Paulo Honório procura uma esposa a fim de garantir um herdeiro. Procura uma mulher da mesma forma que trata as outras pessoas: como objetos. Idealiza uma mulher morena, perto dos trinta anos, e a mais perto da sua vontade é Marcela, filha do juiz. Não obstante conhece uma moça loura, da qual já haviam falado dela. Decide por escolher essa. A moça é Madalena, professora da escola normal. Paulo Honório mostra as vantagens do negócio, o casamento, e ela aceita. Não muito tempo depois de casado, começam os desentendimentos. Paulo Honório, no início, acredita que ela com o tempo se acostumaria a sua vida. Madalena, mulher humanitária e de opinião própria, não concorda com o modo como o marido trata os empregados, explorando-os. Ela torna-se a única pessoa que Paulo Honório não consegue transformar em objeto. Dotada de leve ideal socialista, Madalena representa um entrave na dominação de Honório. O fazendeiro, sentindo que a mulher foge de suas mãos, passa a ter ciúmes mórbidos dela, encerrando-a num círculo de repressões, ofensas e humilhações. O casal tem um filho mas a situação não se altera. Paulo Honório não sente nada pela sua criança, e irrita-se com seus choros. A vida angustiada e o ciúme exagerado de Paulo Honório acabam desesperando Madalena, levando-a ao suicídio. É acometido por imenso vazio depois da morte da esposa. Sua imagem o persegue. As lembranças persistem em seus pensamentos. Então, pouco a pouco, os empregados abandonam São Bernardo. Os amigos já não freqüentam mais a casa. Uma queda nos negócios leva a fazenda a ruína. Sozinho, Paulo Honório vê tudo destruído e, na solidão, procura escrever a história da sua vida. Considera-se aleijado, por ter destruído a vida de todos ao seu redor. Reflete a influência do meio quando afirma: "A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste."
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Roque Santeiro - Dias Gomes

Roque Santeiro (ou O Berço de Um Herói) - Dias Gomes

A peça O berço do herói deveria ter sido encenada pela primeira vez em 1965, mas o Brasil passava pela ditadura militar e, duas horas antes da estréia, a peça foi proibida pela censura. Mais tarde, com o nome de Roque Santeiro, quase virou novela, mas também foi censurada. Toda essa perseguição deve-se ao fato da peça abordar o tema do mito (herói militar), desconstruindo esse mito. Esse era um tema muito delicado para o momento que atravessava o país. Somente em 1985, já com o processo de democratização, a novela foi ao ar, alcançando grande sucesso e tornando personagens inesquecíveis, como o Sinhozinho Malta e a viúva Porcina. É interessante esclarecer que o livro O berço do herói tem o formato de uma peça teatral.
Tempo
A história acontece no período da Segunda Guerra Mundial e Roque retorna à Asa Branca quinze anos depois do final da guerra, quando o governo concedeu anistia aos desertores. Porém, é claro que Dias Gomes utiliza esse tempo passado, como forma de se referir ao tempo em que o livro foi escrito, na ditadura militar da década de 60. Por falar de um herói militar, Dias Gomes tentou criticar o comportamento das Forças Armadas e só pôde fazer isso através de uma história fictícia, deslocada do tempo real, ao qual ele se referia.
Espaço
A cidade de Asa Branca acaba se transformando em uma metonímia do Brasil.
Personagens
CABO ROQUE: Natural de Asa Branca, foi convocado a participar da Segunda Guerra Mundial, contra os nazistas. No meio da guerra, fugiu e se refugiou cerca de 15 anos na Europa. Antes de ir para a guerra, porém, prometeu à Mocinha que voltaria para buscá-la. Anos depois, quando os desertores receberam anistia do governo, voltou para ver Mocinha e encontrou sua estátua na praça e percebeu que tinha se transformado em herói devido a uma confusão. Sua fuga foi interpretada como um ato de coragem e ele foi tido por toda a cidade como herói de guerra morto. Asa Branca enriqueceu às custas desse mito, tornou-se uma cidade do progresso e Porcina, uma empregada que teve um caso rápido com Roque, ganhou status de viúva de herói. Além dela, Chico Malta, Zé das Medalhas e muitos outros exploravam a imagem e, por isso, se interessavam em manter o mito.
PORCINA: é uma mulher de 35 anos, muito vulgar e despudorada. Morava em Salvador, onde era arrumadeira e se envolvia com os soldados que iam ficar na hospedaria em que ela trabalhava. Foi assim que se relacionou por uns dias com Roque. Um dia, conheceu Chico Malta, morador de Asa Branca e se apaixonaram. Chico decidiu levá-la para Asa Branca, mas tinha medo de ter problemas, porque era casado. Para resolver tudo, ambos inventaram a estória de que ela era a viúva do falecido Cabo Roque que morrera lutando na guerra. Assim, ela ficou rica e respeitada na cidade toda.
SINHOZINHO MALTA (CHICO MALTA): Fazendeiro rico e chefe político de Asa Branca. Corrupto e sem caráter, enriqueceu explorando o mito de Roque Santeiro.
FLORINDO ABELHA: Prefeito de Asa Branca, sem personalidade, é o homem de confiança de Chico Malta, pois depende de seu prestígio e se submete a ele. Tenta ser um administrador moderno, mas não manda em nada.
DONA POMBINHA: mulher do prefeito e mãe de Mocinha. Sua religiosidade se aproxima do fanatismo.
MOCINHA: Filha de Dona Pombinha e Florindo. Foi a primeira namorada de Roque e depois que ele foi para a guerra e espalhou-se a notícia de sua morte, decidiu ser casta. Tem um temperamento marcado pela frustração sexual. Encarna a figura da ‘virgem abandonada’. É desencantada com o amor, porque acha que Roque a traiu, casando-se com Porcina.
PADRE HIPÓLITO: é uma figura contraditória (representa a contradição da Igreja no período militar). É a única pessoa da cidade que possui uma visão crítica sobre o desenvolvimento desigual da cidade. Combate também as prostitutas da cidade.
ZÉ DAS MEDALHAS: é o mais bem-sucedido de todos os moradores da cidade. Enriqueceu fabricando medalhinhas do herói Roque. Monopoliza esse comércio e quer expandir seus negócios para o exterior.
MATILDE, NINON E ROSELI: Prostitutas da cidade, Matilde é a proprietária do bordel. Querem construir uma boate chamada Sexual, porém são impedidas pelo padre e pelas beatas.
TONINHO JILÓ: representa o povo. É manipulado pelos políticos e figurões da cidade.
GENERAL: representa os militares. Ao ser comunicado por Chico Malta sobre a volta de Cabo Roque, vai à Asa Branca atrás dele e não admite que o exército passe pelo vexame de ter reverenciado um covarde, que fugiu da guerra.
 
Enredo
-- 1º ATO
1º quadro
A peça tem início com uma batalha. Soldado Roque, que carregava em uma das mãos um fuzil e na outra a bandeira brasileira, foge da trincheira, com medo. Sua fuga é interpretada como um ato corajoso , como se ele tivesse decidido enfrentar o exército inimigo sozinho, e tivesse sido metralhado. Essa morte trágica encoraja os outros soldados, que avançam em massa e derrotam as tropas nazistas na Itália. (Essa é a versão que se espalhou por toda a cidade. Na verdade Roque, fugiu no meio de um bombardeio e não morreu).
2º quadro
Toninho Jiló (o povo) inicia esse quadro cantando:
Vamos, minha gente, vamos / melhorar nossa cultura / o ABC de Cabo Roque / A estória que vão ler / se passou lá nas Oropa / e demonstra que na guerra / brasileiro não é sopa / quando entra numa briga / não teme sujar a roupa.
Nessa parte, o autor passa a demonstrar a vida da cidade de Asa Branca. Percebemos que o suposto feito heróico do cabo Roque elevou sua cidade à categoria de berço do herói. O lugar passou a ser visitados por muitas pessoas e ali foi construída uma estátua de Roque. Além disso, faziam festas para comemorar data de nascimento, data de morte, data da primeira comunhão e outras mais, tudo isso para explorar a figura do herói. Foi feito até um filme contando sua história e medalhas eram vendidas por todos os lados.
3º quadro
A história praticamente começa nesse quadro, pois Porcina está em casa com seu amante, Chico Malta. Conversavam sobre o lucro que Roque dava àquela cidade, até pensavam em uma maneira de transformá-lo em santo. Malta demonstra preocupação em esconder seu envolvimento com Porcina, pois ele é casado. Ressalta que ela precisa ser vista por todos como a viúva do morto, uma mulher virtuosa. Enquanto conversavam, Matilde, a dona do bordel, bate na porta e Sinhozinho Malta sai pela porta dos fundos. Matilde comenta com Porcina sua vontade de abrir uma boate e entrega dinheiro para Porcina levar à igreja. Matilde convida Porcina a ir no bordel e ela responde: Oxente, eu sou a viúva de Cabo Roque, viúva de um herói. Tenho que manter a dignidade.
4º quadro
Zé das Medalhas vai visitar o bordel e leva medalhas de ouro de Roque para as meninas. Nessa quadro, o autor localiza o leitor no estilo de vida dos moradores ilustres da cidade, todos os que viviam em função do mito.
5º quadro
É o início da complicação, pois chega na cidade um rapaz de uns trinta e cinco anos, com uma maleta de viagem nas mãos. Surpreso, pára diante da estátua aonde está escrito: "O povo a seu herói". Ao cruzar com Matilde na praça, pergunta o que é aquilo e ela explica que é o herói da cidade, que fazia de Asa Branca um lugar importante. Acrescenta ainda que Seu Chico Malta era quem cuidava de tudo. O rapaz decide procurá-lo e vai á casa da viúva Porcina, pois Matilde indica esse lugar.
6º quadro
Porcina abre a porta e quando encara o rapaz, grita: Meu Deus!... Não, não pode ser! Tou vendo a alma de um defunto... Como é que eu podia esquecer? Roque... Diante dessa situação, Roque responde: ...Nunca poderia esperar encontrar você, tanto tempo depois, na primeira casa em que eu entro. Como veio parar aqui? Me disseram que aqui mora uma viúva... É a sua patroa?
Na verdade, Roque se dirigiu à casa de Porcina, sem saber que ela era a viúva dele. Eles se conheceram na época em que ele foi convocado para o exército. Porcina era a empregada de uma pousada e eles chegaram a ter um romance rápido.
Roque e Porcina relembram os velhos tempos e Porcina procura omitir muita coisa, com medo da situação. Começa a seduzi-lo e o leva para dentro. Cansado da viagem, Roque acaba dormindo.
7º quadro
Sinhozinho Malta chega na casa de Porcina e se espanta com a história. Vai ao quarto dela, onde Roque dorme e verifica que realmente é ele:
MALTA: Espere, também não é assim. Um homem vira estátua, vira fita de cinema, de repente aparece de cueca, de bunda pra cima, na cama da minha amante.
PORCINA: Sou viúva de um homem que nunca morreu e que nunca foi meu marido. Agora o falecido taí. Quero ver como vamos explicar isso a ele. A ele e a todo mundo, porque amanhã a notícia vai correr de boca em boca.
MALTA: Ninguém deve saber. É preciso que ele não saia daqui, que não apareça a ninguém. Até eu decidir o que vamos fazer. Não é só o seu caso. A volta desse rapaz vai criar muitos casos.
Depois dessa conversa, Malta vai embora desesperado e ambos prometem pensar rapidamente em uma solução.
8º quadro
Roque acorda cedo, antes de Porcina, e vai passear pela praça onde encontra o padre Hipólito. O padre não o reconhece, mas ele insiste: Não se lembra mais de mim? Fui seu coroinha... seu aluno de catecismo. O padre finge lembrar, mas sai apressado para sua caminhada. Logo em seguida, Porcina vem correndo e pede que ele não saia de casa, para que a cidade não descubra que ele voltou e está vivo. Sem entender nada, Roque pensa que ela se refere ao fato de ele ter abandonado a guerra, pensa que foi tido como desertor. Percebendo isso, Porcina explica que a estátua da cidade era para ele e que, para todos de Asa Branca, ele morreu lutando, dando a vida pela pátria, o primeiro soldado brasileiro que morreu pela democracia. Roque se espanta ao descobrir que é um herói.
Malta chega e Roque conta como fugiu da guerra, no meio de um bombardeio, ficando apenas ferido no ombro. Confessa que foi um covarde e completa: Talvez tenha feito coisas ainda piores pra não morrer. E o que fizeram comigo, em nome da democracia, da liberdade, da civilização cristã e de tantas outras palavras?
No meio dessa constatação, percebendo a chegada de alguém, Roque se esconde. É o padre Hipólito que veio buscar o dinheiro que a prostituta Matilde deu à Porcina e aproveita para comentar com Malta o encontro na praça. O padre explica que lembrou quem era depois e que era o Roque. Além disso, afirma que já comentou com o prefeito e com Zé das Medalhas. Logo em seguida, chegam os dois apavorados. Diante da comprovação, procuram o que fazer:
MALTA: Há quinze anos que a cidade vive de uma lenda. Uma lenda que cresceu e ficou maior que ela. Hoje, a lenda e a cidade são a mesma coisa. Na hora em que o povo descobrir que Cabo Roque tá vivo, a lenda tá morta. E com a lenda, a cidade também vai morrer. Tou certo ou tô errado?
Todos chegam à conclusão que se o povo descobrir a verdade, Asa Branca vai acabar e com ela a fonte da riqueza de todos ali. Resolvem então chamar Roque e propor que ele volte à Itália.
ROQUE: (eu vou embora) E todos continuam aqui cultuando a memória do herói. E vivendo à sombra de uma mentira. Já disse que não tenho vocação para mártir. Não acredito nisso, não posso acreditar que um homem seja mais útil morto do que vivo. Do contrário ia ter que acreditar também que todos aqueles infelizes que morreram na guerra foram muito úteis. E que a guerra é uma necessidade porque fabrica heróis em série.
Diante da negação dele, Malta decide ir ao Rio denunciá-lo ao exército.
9º quadro (encenação) todos cantam
À sombra dessa estátua / uma cidade cresceu / cresceu, cresceu, cresceu / à sombra dela cresceu / E agora que fazer / Que a estátua virou / virou, virou, virou / de novo gente virou.
-- 2º ATO
10º quadro
O autor começa descrevendo a praça, que está toda enfeitada com faixas e cartazes:
Bem-vindo Cabo Roque – A cidade recebe com orgulho seu heróico filho.
O comentário geral é que Roque sobreviveu á guerra e que está voltando para sua cidade.
No meio dessa confusão Chico Malta volta do Rio com um general e fica surpreso diante da decoração do lugar. Porcina o chama e explica que na ausência dele, todos decidiram contar para a cidade que ele está vivo e inventaram a história de que ele ia chegar com todas as glórias que merece. Malta gosta da idéia, chama o general e explica que Roque é um herói militar e por isso merece as honras do exército. O general entretanto, não aceita ser cúmplice dessa mentira e diz que essa decisão é incompatível com a dignidade militar.
11º quadro
Mocinha desconfia que Roque Santeiro já estava em Asa Branca e entra na casa de Porcina escondida. Encontra Roque na sala. A moça o questiona, inconformada porque acha que ele realmente é casado com Porcina. Roque se surpreende com essa informação, mas não tem tempo de se explicar para o seu grande amor, porque Porcina chega e a menina sai correndo. Ele descobre finalmente, porque chamam a mulher de viúva: ela é viúva dele. Porcina conta para Roque essa invenção de Malta para levá-la à Asa Branca sem despertar a desconfiança da mulher do Sinhozinho. Entretanto, se oferece para ser sua mulher de verdade, mas ele não aceita, alegando que é ele quem decide sua vida. Porcina acaba deixando escapar que o general está na cidade e Roque decide fugir para o bordel.
12º quadro
As prostitutas o recebem e querem saber o que ele fez durante todos esses anos. O autor se utiliza dessa cena para fazer algumas reflexões sobre a questão do herói militar:
ROQUE: Profissão? Herói! (arrumei essa profissão) Na guerra! Lutei sozinho contra Hitler, Mussulini...Sozinho contra os alemães...Ah, mas é muito dura a profissão de herói. Se eu tivesse morrido, era fácil. Ou se eu tivesse sido herói por acaso, sem querer, como muitos. Mas sou um herói por convicção. Um herói de corpo inteiro.
TODOS: É um mundo estranho esse / em que o amor ao pêlo pode ser / um gesto revolucionário / e provocar a ira dos que nos querem enterrar.
13º quadro
Sinhozinho Malta procura Roque na casa de Porcina e ela fala que ele fugiu. Malta começa a pensar em dar um fim nele, crendo que essa é a melhor solução. Para a cidade que espera sua volta devido às faixas espalhadas por todos os lugares, eles falariam que era um louco que se fez passar por Roque. Porcina pede que o deixe fugir, mas Malta acha melhor não.
14º quadro
Chico Malta, Florindo e o general procuram o fugitivo e vão ao bordel. Lá, o general passa a questioná-lo e ele confirma ser o Cabo Roque. Isso deixa o militar com raiva, porque Roque era da sua tropa na guerra. Além disso, havia um batalhão do exército que tinha o nome dele. Percebendo que sua vida estava por um fio, o Cabo pergunta se eles querem que ele volte para a Itália, porém, o general responde que não, pois ele pode querer chantagear o exército e a honra militar não pode ficar nas mãos de um canalha.
GENERAL: A verdade é que não tem nenhum sentido ele estar vivo. A morte dele consta da ordem de dia 18 de setembro de 1944 do 6º Regimento de Infantaria. Foi uma morte heróica, apontada como exemplo de bravura do nosso soldado. Atentem bem os senhores o que significa: há um batalhão com o nome dele. Isso é definitivo. Para o exército ele está morto e deve continuar morto.
ROQUE: Parece que a única maneira de não desmentir o boletim do meu Regimento é eu dar um tiro na cabeça ou beber formicida. Só que me falta coragem...Sabem o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Hoje o mundo é outro. E vocês ficam aí cultuando a memória de um herói absurdo. Absurdo sim, porque imaginam ele com qualidades que não se pode ter. Caráter, coragem, dignidade... não vêem que tudo isso é absurdo?
Malta deixa os dois discutindo e sobe para conversar com Matilde e promete patrocinar sua boate se ela der uma bebida envenenada a Roque. A proposta é aceita e todos decidem ir embora. Roque fica sem entender nada, mas fica bebendo com as meninas do bordel. Começa a sentir seu corpo cambalear e cai. Isso coincide com a chegada das beatas à porta do bordel para protestarem contra a abertura da boate, jogando pedras lá dentro.
15º quadro
Essa cena tem início com o corpo de Roque estendido no bordel, com um lençol acima e velas em volta. Matilde explica que uma das pedras jogadas pelas beatas atingiu a cabeça dele e isso foi fatal. Pouca gente fica sabendo do ocorrido, pois nem sabiam da presença de Roque lá dentro.
PORCINA: Desde que ele chegou que eu senti que alguma coisa ruim ia acontecer
MALTA: A ele ou a todos nós. É nisso que a gente deve pensar. A uma cidade inteira
FLORINDO: Não seria um crime muito maior matar uma cidade? Em compensação, teremos uma estrada
MALTA: Uma estrada asfaltada para chegar na capital em duas horas.
PORCINA: Que bom. Vou a Salvador toda semana.
MALTA: E ninguém constrói uma estrada dessas sem sacrificar muitas vidas. É a paga do progresso.
A culpa do homicídio recai sobre o padre e as beatas, principalmente Mocinha que se sente culpada por também ter jogado pedras. Devido a isso, o padre é obrigado a aceitar a boate na cidade. Malta propõe abafarem o caso, alegando que se ele pudesse escolher, preferiria ter morrido na guerra.
16º quadro
As prostitutas conseguem abrir a Boate Sexus. Na abertura o prefeito discursa:
FLORINDO: Declaro inaugurada esta casa que é, em seu gênero, uma das melhores do país, quiçá da América do Sul. Quero declarar também que isso não seria possível sem o espírito empreendedor de dona Matilde... que tanto tem colaborado com o nosso plano de turismo. Plano que, se Deus quiser, há de fazer de Asa Branca uma cidade digna de Cabo Roque, aquele que morreu lutando pela democracia e pela civilização cristã.
A peça termina com uma fala de Malta:
MALTA (canta): Assim, senhoras e senhores / foi salva a nossa cidade / Com pequenos sacrifícios / de nossa dignidade / com ligeiros arranhões / em nossa castidade / e algumas hesitações / entre Deus e o Demônio / conseguimos preservar / todo o nosso patrimônio.
Comentários
Linguagem: A linguagem do livro é muito coloquial e simples. Dias Gomes inclui em seu texto palavras do linguajar popular, utilizando até mesmo palavra chulas. Além disso, há em diversos fragmentos ressonâncias das cantigas populares do Brasil.
Personagens: As personagens, em grande parte, são caricaturas de tipos que articulavam o poder em nosso país.
Os militares são vistos, através do general, como autoritários. Além disso, queriam manter o que estabeleciam como verdade, mesmo que isso não fosse verdade. A morte de Roque era tida como verdade, então precisava ser, ou seja, Roque vivo precisava morrer para que a palavra do exército não fosse desmoralizada, custasse isso qualquer o preço.
A Igreja por sua vez, tem dois ângulos no livro. Tem um lado crítico, que rejeita omito progresso, que esconde falsos valores, mas também manipula beatas. Dias Gomes deixa bem clara sua opinião: no período da ditadura foi omissa e muitas vezes conivente com os abusos. Sua preocupação era em manter a falsa moral e não a verdade.
Os políticos como Florindo, o prefeito, demonstram que, segundo Dias Gomes, o poder político não estava com quem tinha sido eleito pelo povo, mas sim com aqueles que detinham o poder econômico, como o Sinhozinho Malta. Malta é também o retrato do que ocorre nas cidades do interior do Brasil, onde os poderosos amedrontam e dominam o povo.
Por outro lado, o capitalismo selvagem é analisado através de quem explora a ingenuidade do povo, vendendo medalhas de um falso herói, como é o caso de Zé das Medalhas. Diante de tudo isso, o povo (representado no livro por Toninho Jiló) nunca conhece a verdade e acaba sempre sendo levado por aquilo que os poderosos querem que ele acredite.
Herói: Dias Gomes questiona um conceito muito interessante do herói. No lugar de simplesmente desconstruir essa figura, apresentando o anti-herói, o autor procura demonstrar como o herói é construído.
Seu livro trata da necessidade do brasileiro de criar figuras maravilhosas. Para isso, expõe a carência das pessoas ao crerem em alguém que é o ser humano ‘ideal’, dotado de virtudes que não temos. A partir disso, aqueles que são mais espertos passam a explorar essa imagem e o mito se consolida. Depois de consolidado, entretanto, aqueles que o criaram acabam perdendo o controle sobre ele e ele passa a ter uma importância que ultrapassa até o bom senso. O mito é também incorporado ao progresso.
Roque precisava morrer, porque ele era um ‘herói’ e essa imagem é mais importante do que a realidade. A personalidade verdadeira do Cabo Roque é totalmente diferente da do herói Roque. O primeiro é um covarde, egoísta e o segundo é cheio de virtudes, como a coragem e o nacionalismo. O que complica tudo isso é o fato dele ser um herói militar, de quem se espera bravura. Ele ter fugido da guerra acaba com a idealização em torno das Forças Armadas.
 
História Real X História Ideal
Temos no livro dois enfoques da história: a real – Roque foi um covarde e fugiu da guerra – e a ideal – Roque foi um herói e deu a vida pelo país.
Desconstrução da guerra
Se os heróis são necessários para o povo, a guerra também é, porque fabrica heróis em série. O autor procura desconstruir isso e demonstra que o povo não precisa de heróis e que a guerra, ao contrário da visão idealizada que se faz dela, é uma destruição.
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Romanceiro da Inconfidência - Cecília Meirelles

Romanceiro da Inconfidência - Cecília Meirelles
          Podemos dividir os fatos que compõem o Romanceiro em três partes ou ciclos:
            a) ciclo do ouro;
            b) ciclo do diamante;
            c) ciclo da liberdade ou inconfidência com sua ascensão e queda.
            Aí parece haver uma gradação proposital: ouro/diamante/liberdade.
            Como o ouro e o diamante, a liberdade brilhou intensamente nas Minas Gerais, mas como o ouro e o diamante, a liberdade só trouxe desgraças, masmorras e mortes....

a) Ciclo do ouro
            O cenário colocado para o ciclo do ouro prenuncia também o ciclo da liberdade, no qual "a mão do Alferes de longe acena" como a querer dizer: Adeus! que trabalhar vou para todos!...
            Mas essa mão que acena à liberdade e ao homem livre será enforcada mais tarde. Por enquanto, vejamos o alvorecer do ouro que vai brilhar intensamente nas Minas Gerais, despertando a cobiça e ganância dos homens e, quem sabe, o sonho de liberdade dos inconfidentes que nasceria também do ouro da terra.
Descobre-se o ouro e, por causa dele, o homem vai matando animais, pessoas, florestas e tudo que lhe atravessa o caminho. Desbrava-se a mata. Surgem montanhas douradas de ouro e de cobiça que despertam uma verdadeira alucinação:
                        Selvas, montanhas e rios
                        estão transidos de pasmo.
                        É que avançam, terra adentro,
                        os homens alucinados. (Romance I)

            E gerações e mais gerações de netos afundariam nesse abismo:
                        Que a sede de ouro é sem cura,
                        e, por ela subjugados,
                        os homens matam-se e morrem,
                        ficam mortos, mas não fartos. (ib .ib)

            Como o ouro que brota da terra, brotam também "as sinistras rivalidades", ladrões e contrabandistas, - um clima de intranqüilidade:
                        todos pedem ouro e prata,
                        e estendem punhos severos,
                        mas vão sendo fabricadas
                        muitas algemas de ferro. (Romance II)
           
            E por amor, pelo ouro, uma donzela é assassinada pela mão de seu pai. O ouro não permitia que a donzela acenasse a enasse a um amor "de condição desigual" o seu lencinho" de sonho e sal"
            Surge Felipe dos Santos, que assanha a fúria do Conde de Assumar. É morto e esquartejado, mas o herói que tomba no Arraial do Ouro Podre ficará como exemplo perene de força e de coragem para os que virão.
O tirano conde haveria de chorar porque quem ri, chora também. O Brasil ainda era criança - um "menino" apenas. Nasceriam outros como Felipe dos Santos:
                        Dorme, meu menino, dorme,
                        - que Deus te ensine a lição
                        dos que sofrerem neste mundo
                        violência e perseguição
                        Morreu Felipe dos Santos;
                        outros, porém, nascerão. (Romance V)

            Cria-se o quinto do ouro, cobrado a ferro e fogo: a Coroa precisava de ouro. Há logros: D. Rodrigo César e Sebastião Fernandes enviam para a coroa caixotes selados com "grãos de chumbo" em vez de grãos de ouro.
                        Ai, que o Monarca procura
                        os que vão ser castigados.

            E o "quinto falsificado" se tornaria o décuplo de forcas e degredos para a dourada colônia! Pela madrugada fria, rompe o canto do negro no serviço de catar o ouro, enquanto o patrão dorme e sonha. O negro pena e chora, canta e ri na saudade da serra, na imensidão da terra. E na sua vida escrava, ele erra sem terra, sem serra, sem nada:
                        (Deus do céu, como é possível!
                        penar tanto e não ter nada!) (Romance VII)

           O ouro lhe tiraria o "t" da terra e o "s" da serra e ele erra cativo, sem liberdade, com os elos de ferro da escravidão...
            Mas o ouro que brotava da terra não cativara apenas o preto, como Chico, que também já fora rei "lá na banda em que corre o Congo": também os brancos foram atirados naquela lama que alimentava a ganância de reis e rainhas:
                        Hoje, os brancos também, meu povo,
                        são tristes cativos. (Romance VIII)

            Santa Ifigênia, princesa núbia, protetora dos negros, desce às minas "vira-e-sai", depois de amenizar o sofrimento deles.
            As pessoas, por causa do ouro, iam-se embrutecendo: movido pelo ódio, um contratador, quase assassinou um ouvidor, dentro de uma igreja, porque este, enamorado, arremessara uma flor a uma donzela.
            Os filhos do almotacé (inspetor de pesos e medidas), sete crianças, rezam diante de Nossa Senhora da Ajuda. Joaquim José é uma delas.
            As crianças pedem à Virgem que o salve "do triste destino que vai padecer". Será em vão. A virgem não poderá atendê-los, mesmo sendo crianças. Mais forte do que um pedido de criança é o destino traçado para um homem! Mesmo sendo seis e irmãos do sentenciado!
                        (Lá vai um menino
                         entre seis irmãos.
                         Senhora da Ajuda,
                         pelo vosso nome,
                         estendei-lhe as mãos!) (Romance XII)

            O pedido agora (entre parênteses) é da poetisa à Virgem. Não será atendida: mais forte do que o pedido de um poeta é o destino traçado para um homem!
            Mas, por enquanto, reina a bonança: "os tempos são de ouro". A tempestade virá depois, em 1792, com a execução.
            Antes de chegar a forca, porém, outro metal brilhará intensamente nas Minas Gerais: os diamantes do Tejuco, depois Diamantina.

b) Ciclo do diamante
            Continua a corrida alucinante. Agora é a vez do diamante nas regiões do Serro Frio e do Tejuco, onde vive o contratador João Fernandes, "dono da terra opulenta".
            Chega às suas terras, com o fim de persegui-lo, o Conde de Valadares, homem enganoso e fingido. Hospeda na casa de João, que lhe abre a casa e o coração das mulatas, menos o de Chica da Silva. Sua riqueza é imensa e o fingido conde suspira de cobiça:
                        Deste tejuco não volto
                        sem ter metade das lavras,
                        metade das lavras de ouro,
                        mais outro tanto das catas;
                        sem meu cofre de diamantes,
                        todos estrelas sem jaça,
                        - que para os nobres do Reino
                        é que este povo trabalha! (Romances XIII)

            O romance XIV apresenta Chica da Silva no seu império de luxo, resplandecente de ouro e diamante. Comparada à rainha de Sabá, ela tinha mais brilho que Santa Ifigênia, a princesa núbia, em dias de festa:
                        (Coisa igual nunca se viu.
                        Dom João Quinto, rei famoso,
                        não teve mulher assim!)

            Vendo o conde tão interessado pelo João, Chica cisma nessa falsa amizade e previne a João Fernandes:
                        Hoje, todo o mundo corre,
                        Senhor, atrás de riqueza. (Romance XV)

            Dito e feito: o conde, traindo a hospedagem de João Fernandes, leva-o preso, como Chica da Silva pressentira.
            É a ambição do ouro (ou do diamante, que é sempre a mesma coisa) que a todos embriaga e corrói:
                        Maldito o conde, e maldito
                        esse ouro que faz escravos,
                        esse ouro que faz algemas,
                        que levanta densos muros
                        para as grades das cadeias,
                        que arma nas praças as forças,
                        lavra as injustas sentenças,
                        arrasta pelos caminhos
                        vítimas que se esquartejam! (Romance XVII)

            Os velhos do Tejuco, na sua experiência, pensam com a amargura na "febre que corta o Serro Frio". João Fernandes, que até então era senhor opulento, fora levado num navio "igual a um negro fugido", o que dá margem a esta reflexão da autora:
                        (Que tudo acaba!
                         Quem diz que montanha de
                         ouro não desaba?) (Romance XVIII)

            Acabara-se o tempo de João Fernandes e de Chica da Silva, cravejada de brilhantes. Mas:
                        Sobre o tempo vem mais tempo.
                        mandam sempre os que são grandes:
                        e é grandeza de ministros
                        roubar hoje como dantes
                        vão-se as minas nos navios...
                        Pela terra despojada,
                        ficam lágrimas e sangue. (Romance XIX)

            Mas o ouro e o diamante, que brilharam tão intensamente nas Minas Gerais, eram apenas prenúncio de um brilho maior. Um sonho milenar, um ideal de um sol que despertaria - o sol da liberdade que a todos iluminaria e que nem rei nem rainha, por mais despóticos que sejam, podem tirar do homem!
            Não importa que haja eclipses de vez em quando: o sol sempre volta a brilhar depois de um eclipse...

c) Ciclo da liberdade
            A poesia apresenta o cenário onde vão se desenrolar os fatos: enumeração, sobretudo, dos lugares e fixação na névoa que chega às ruas, move a ilusão de tempo e figuras e que trará, fatalmente, o pranto e a saudade:
                        A névoa que se adensa e vai formando
                        nublados reinos de saudade e pranto.

            O "país da Arcádia", sediado na Vila Rica de outrora (Ouro Preto), com seus pastores e rebanhos, Nises, Marílias e Glauceste não passou de um ideal na literatura.
            Pelos céus, nuvens negras de ódio e ambições ameaçam a doutorada terra de Ouro Preto: uma "nuvem de lágrimas" está prestes a desabar sobre "o país da Arcádia" - a "pastoral dourada":
                        O país da Arcádia,
                        súbito, escurece,
                        em nuvem de lágrimas.
                        Acabou-se a alegre
                        pastoral dourada:
                        pelas nuvens baixas,
                        a tormenta cresce. (Romance XX)

            E a Arcádia serena ficava cada vez mais carregada: agitação, correrias, ódio, ambições, países que se libertam, "a Europa a ferver em guerras". Portugal com uma rainha louca: - um imenso tumulto humano.
            As idéias fervilhavam as mentes de padres e poetas. Mas, por trás das janelas, ouvidos que escutam...
            O país da Arcádia estava carregado de "idéias".
            Um príncipe que morre, filho de D. MariaI, a rainha louca, em 1788, é também uma esperança que morre. Nas exéquias do príncipe, muita agitação. Alguma coisa está sendo tramada - "já ninguém quer ser vassalo" e:
                        A palavra Liberdade
                        vive na boca de todos:
                        quem não a proclama aos gritos,
                        murmura-a em tímido sopro. (Romance XXIII)

            Com pouco mais surgirá a bandeira da liberdade...
            "Atrás de portas fechadas", os líderes de "fardas e casacas (= militares, poetas), junto com batinas pretas" discutem e planejam a inconfidência. A bandeira com seu lema é escolhida e há um sobressalto, quando se fala em liberdade:
                        E os seus tristes inventores
                        já são réus - pois se atreveram
                        a falar em Liberdade
                        (que ninguém sabe o que seja),
                        Liberdade - essa palavra
                        que o sonho humano alimenta:
                        que não há ninguém que explique,
                        e ninguém que não entenda!) (Romance XXIV)

            Por causa dessa palavra - espinha dorsal do homem de todos os tempos - um rio de sangue está iminente: uma carta anônima que se recebeu "fala de rios propínquos / rios de lágrimas e sangue / que vão correr por aqui".
            E na "semana santa de 1789", enquanto na França a liberdade rompia os grilhões da Bastilha, nas terras douradas de Minas, a mesma idéia se fermentava para ser depois enforcada, na pessoa de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes:
                        Deus, no céu revolto,
                        seu destino escreve.
                        Em baixo, na terra,
                        ninguém o protege;
                        é o talpídeo , o louco,
                        - o animoso Alferes. (Romance XXVII)

            Mas "no grande espelho do tempo", a poetisa vê também "o impostor caloteiro" Joaquim Silvério :
                        (quem em tremendos labirintos
                         prende os homens indefesos
                         e beija os pés dos ministros!) (Romance XXVIII)

            No "riso dos tropeiros" está colocado um aspecto de Tiradentes que a tradição confirma (inclusive um lira de Gonzaga), a loucura, pois:
                        falava contra o governo,
                        contra as leis de Portugal. (Romance XXX)

            Sem dúvida, essa loucura deve ser entendida de outra forma: a audácia de um homem que se levanta, sem força e sem armas, contra um governo despótico e tirânico. É o que parece querer dizer a poetisa, no Romance XXXI:
                        (Pobre daquele que sonha
                         fazer bem - grande ousadia -
                         quando não passa de Alferes
                         de cavalaria!)

             É certamente por isso que "o povo todo seria", porque o povo nunca ri sem razão...
           Aliás, neste sentido, é preciso também o depoimento do "cigano que viu chegar o Alferes", quando diz no Romance XXXIII:
                        (Fala e pensa como um vivo,
                         mas deve estar condenado.
                         Tem qualquer coisa no juízo,
                         mas em ser um desvairado.)

            O Romance XXXIV, confrontando o delator Joaquim Silvério com Judas, a escritora conclui que aquele levou a melhor, pois ele (Judas) encontra remorso / coisa que não te (= a Silvério) acontece.
            Fechando o romance, entre parênteses, há uma reflexão poética profunda, quando fala da "força de vermes", ou seja, dos delatores, dos maus, enquanto os bons apenas "sonham".
                        (Pelos caminhos do mundo,
                         nenhum destino se perde:
                         há os grandes sonhos dos homens
                         e a surda força dos vermes.)

            Aliás, é o que ocorre também no romance "do suspiroso Alferes", onde há, igualmente, um lamento profundo sobre o comodismo do homem face à situação que o envolve:
                        (Todos querem liberdade,
                         mas quem por ela trabalha?)
                        (O humano resgate custa
                         pesadas carnificinas!
                         Quem more, para dar vida?
                         Quem quer arriscar seu sangue?)

            E é exatamente esse comodismo, dos bons que é a força dos maus, dos traidores, dos déspotas da liberdade:
                        Mas os traidores labutam
                        nas funestas oficinas:
                        vão e vêm as sentinelas
                        passam cartas de denúncia...

            Na "noite escura" de 10 de maio de 1789, prenderam o Tiradentes com seus pensamentos de liberdade. Há um lamento profundo de desespero e dor por estar sozinho na luta pela liberdade:
                        Minas da minha esperança,
                        Minas do meu desespero!
                        Agarram-me os soldados,
                        como qualquer bandoleiro.
                        Vim trabalhar para todos,
                        e abandonado me vejo.
                        Todos tremem. Todos fogem.
                        A quem dediquei meu zelo? (Romance XXXXVII)

            E o medo e a ansiedade se espalham por toda Minas Gerais. No fim do mesmo maio, prendem os outros suspeitos:
                        Andam as quatro comarcas
                        em grande desassossego:
                        vão soldados, vêm soldados;
                        tremem os brancos e os negros.
                        Se já levaram Gonzaga
                        e Alvarenga, mas Toledo!
                        Se a Cláudio mandam recados
                        para que se esconda a tempo!

            Outros implicados menores vão sendo presos. Há "conversas indignadas" - há também "testemunha falsa". Há até mesmo um "embuçado" envolto em panos e mistério que pretende salvar o poeta Cláudio Manuel da Costa.
            Mas todos terão seu fim.
            O padre Rolim, famoso por suas safadezas, estava na iminência de ser preso. O problema era determinar o seu crime, já que, além da suspeita de inconfidente, era culpado também, segundo o falatório:
                        por ter arrombado a mesa
                        de um juiz, em certa devassa;
                        por extravio de pedras;
                        por causa de uma mulata;
                        por causa de uma donzela;
                        por uma mulher casada. (Romance XLV)

            Mas o padre, que não era nada bobo, enquanto as autoridades discutiam a sua prisão, "pulando cercas e muros", fugiu, levando consigo os seus sete pecados ou setenta -e sete...
            Nos "seqüestros" das casas e bens, "tudo é visto e resolvido" pelos executores da lei, havia de tudo, até mesmo:
                        as sugestões perigosas
                        de França e Estados Unidos
                        Mably, Voltaire e outros tantos,
                        que são todos libertinos... (Romance XLVII)

            Antes de prosseguir no trabalho de dar fim aos inconfidentes, a autora interrompe a narrativa para fazer uma belíssima reflexão na Fala aos Pusilânimes, na qual condena os que não tiveram a coragem, a audácia de acender o pavio da chama da liberdade; os que sonharam e deixaram que seus sonhos fossem pelos espaços infindos, como bolhas etéreas...
            Mas o fenômeno é eterno e universal - a estirpe dos pusilânimes sempre existiu e existirá na face da terra:
                        - só por serdes os pusilânimes,
                        os da pusilânime estirpe,
                        que atravessa a história do mundo
                        em todas as datas e raças,
                        como veia de sangue impuro
                        queimando as puras primaveras,
                        enfraquecendo o sonho humano
                        quando as auroras desabrocham!

            E a liberdade que foi traída pela pusilanimidade dos que sonhavam com ela ficará gravada nos "céus eternos" como um eco sombrio que chama ao ajuste de contas e à condenação eterna:
                        O vós, que não sabeis do Inferno,
                        olhai, vinde vê-lo, o seu nome
                        é só - PULSILANIMIDADE.

            Mistério paira sobre o fim do poeta Cláudio, que é também a versão da história. Suicídio? Fuga? Rapto? - As dúvidas parecem justificáveis: Cláudio era secretário do governo e afilhado de João Fernandes. Daí o interesse por livrá-lo da masmorra e do desterro.
            De qualquer modo paira o mistério:
                        Entre esta porta e esta ponte,
                        fica o mistério parado.
                        Aqui, Glauceste Satúrnio ,
                        morto, ou vivo disfarçado,
                        deixou de existir no mundo
                        em fábula arrebatado. (Romance XLIX)

            Tomás Antônio Gonzaga, o Dirceu da Marília, também tem fim sombrio na masmorra da Ilha das Cobras, interrompendo, assim, o enxoval de Maria Dorotéia (Marília) de quem era noivo.
            Depois foi desterrado para as terras da África negra (Moçambique), onde se casa com Juliana Mascarenhas , deixando do outro lado do mar e da vida a pobre e inconsolável Marília a quem celebrara em inúmeras e ardentes liras de amor, em Marília de Dirceu.
            Enfim, em questões amorosas, o homem é sempre um pombo enigmático...
            Há dúvidas quanto à sua real participação na Inconfidência como procura demonstrar Rodrigues Lapa em estudo a seu respeito. Aliás, o próprio Gonzaga em uma das liras de Marília de Dirceu procura se inocentar junto ao Visconde de Barbacena.
            Cecília Meireles também deixa transparecer a mesma dúvida, ao indagar:
                        Inocente, culpado?
                        Enganoso? Sincero? (Romance LV)

            Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi enforcado a 21 de abril de 1792, três anos depois de ser preso. Como atestam diversas passagens do Romantismo, era considerado louco por causa das idéias que tinha. Depois de morto, virou herói:
                        Que os heróis chegam à gloria
                        só depois de degolados.
                        Antes, recebem apenas
                        ou compaixão ou desdém. (Romance XLIV)

            A passos lentos, ele caminha sereno para o cadafalso onde o espera, um tanto aflito, o negro Capitania, que o executará. E diz o mártir:
                        Ó, permita que te beije
                        os pés e as mãos...Nem te importe
                        arrancar-me este vestido...
                        Pois também na cruz, despido
                        morreu quem salva da morte!

            E o negro Capitania lamenta a sua sorte de carrasco oficial do grande sonho humano - a liberdade:
                        Vede o carrasco ajoelhado,
                        todo em lágrimas lavado,
                        lamentar a sua sorte! (Romance LVIII)

             Só um carrasco lavou-se em lágrimas! Os outros seriam lavados com o sangue daquele mártir que tombava...
            O cenário agora era desolador e triste: nada mais restava dos sonhos e ideais pretéritos. Tudo fora destruído pelas mãos dos delatores da vida, porque a vida está na liberdade.
            Tudo agora estava reduzido a "um chão sem ouro nem diamante". Nada mais brilhava nas terras douradas de Minas Gerais!
            Também os tiranos tiveram o seu fim.
            A rainha D. Maria I, que mandara executar os inconfidentes da sua coroa, acaba se tornando prisioneira do seu próprio destino: ela que executava tantos, com masmorras , desterros, forcas, torna-se prisioneira da loucura que é pior que qualquer masmorra, desterro ou morte de forca.
            O destino agora se voltava contra a grande déspota da liberdade!
                        Ai, que a filha da Marianinha
                        jaz em cárcere verdadeiro,
                        sem grade por onde se aviste
                        esperança, tempo, luzeiro...
                        prisão perpétua, exílio estranho,
                        sem juiz, sentença ou carcereiro...
                        Terras de Angola e Moçambique,
                        mais doce é vosso cativeiro! (Romance LXXIV)

            Pela "comarca do Rio das Mortes (= S.João Del-Rei), Dona Bárbara Eliodora, "a estrela do norte" do poeta Alvarenga Peixoto, naufragava em lágrimas e mágoas: seu doce Alceu também fora desterrado para as longínquas terras d´África, em Angola (Ambaca).
            Agora as amenas colinas de outrora, onde o gado pastava, onde as flores sorriam, onde os regatos corriam, onde os pássaros cantavam, eram um montão de ruínas e desolação ante o olhar magoado e amargurado da rica e poética Eliodora.
            Pela "comarca do Rio das Mortes" também dormia o padre Toledo, "paulista de grande raça / mação, conforme o seu tempo".
            Pela "comarca do Rio das Mortes" também passara e se fora Maria Ifigênia, fruto primaveril do casal Bárbara - Alvarenga:
                        Vai ver sua mãe demente
                        Vai ver seu pai degredado... (Romance LXXVII)

            Também Marília se desfigurou pelo tempo e pela Inconfidência. O seu retrato agora é o de uma mulher macerada pela dor:
                        já não pertence mais à terra:
                        é só na morte que está viva

            Agora, tudo jaz em silêncio: amor, inveja, ódio, inocência, no imenso tempo se estão lavando, declara a poetisa na Fala aos inconfidentes mortos.
            No horizonte eterno há de ficar sempre o anseio de liberdade, e só o purgatório do tempo está apto às ações vis e nobres dos homens da terra:
                        Quais os que tombam,
                        em crimes exaustos,
                        quais os que sobem
 
Considerações Gerais
            Como o nome sugere, romanceiro é uma coleção de romances. Romance deve ser entendido, nesse caso, como um gênero de origem medieval, muito característico na península Ibérica, constituído de narrativas breves, sob forma de poemas épico - líricos , que originalmente eram cantados ao som de um instrumento, celebrando as aventuras e proezas de um herói de cavalaria ou fatos da nacionalidade de um povo.
            Preservadas pela memória popular, oralizados de forma fragmentária pelo povo, algumas ações mudavam de natureza e tomavam vida independente: ao lado das imagens objetivas e da narração, peculiares ao gênero épico - lírico , no qual se impõem notas de emoção e subjetividade, e o gênero dramático - lírico, no qual predominam os diálogos.
Etimologicamente , o termo origina-se do latim romanice, ou seja, as narrativas eram feitas no loqui romanice (falar à maneira de Roma).
            Segundo Cecília Meireles, anos depois da publicação do Romanceiro, em Ouro Preto, no I Festival da cidade onde se deu a Inconfidência:
            "Muitas vezes me perguntei porque não teria existido um escritor do século XVIII - e houve tantos, em Minas! - que pudesse por escrito essa grandiosa e comovente história. Mas há duzentos anos de distância pode-se entender por que isso não aconteceu, principalmente se levarmos em conta o traumatismo provocado por um episódio desses, em tempos de duros castigos, severas perseguições, lutas sangrentas pela transformação do mundo, em grande parte estruturada por instituições secretas, de invioláveis arquivos.
            Também muitas vezes me perguntei se devia obedecer a esse apelo dos meus fantasmas, e tomar o encargo de narrar a estranha história de que haviam participado e de que me obrigaram a participar também, tantos anos depois, de modo tão diferente, porém, com a mesma, ou talvez maior, intensidade.
            Sem sombra de pessimismo, posso, no entanto, confirmar por experiência a verdade de que somos sempre e cada vez mais governados pelos mortos.
            No decorrer das minhas incertezas e dos meus escrúpulos em aproximar-me de tema tão grave, os fantasmas começaram a repetir suas próprias palavras de outrora: as palavras registradas no depoimento do processo, ou na memória tradicional, vinham muitas vezes e inesperadamente, já metrificadas.(...) Até os nomes de alguns personagens foram versos perfeitos:
                        "To/más/An/tô/nio/Gon/za/ga"
                        1 2 3 4 5 6 7
                        "Do/na/Bár/ba/ra E/lio/do/ra"
                        1 2 3 4 5 6 7
                        "Joa/quim/Jo/sé/da/Sil/va/Xa/vi/er"
                        1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

            Assim, a primeira tentação diante do tema insigne, e conhecendo-se, tanto quanto possível, através dos documentos do tempo, seus pensamentos e sua fala, seria reconstituir a tragédia na forma dramática em que foi vivida, redistribuindo a cada figura o seu verdadeiro papel. Mas se isso bastasse, os documentos oficiais com seus interrogatórios e respostas, suas cartas, sentenças e defesas realizariam a obra de arte ambicionada, e os fantasmas sossegariam, satisfeitos.

Os "Cenários", os "Romances" e as "Falas"
            Há três estruturas que se alternam no poema: os romances, os cenários e as falas.
            Os romances , em número de oitenta e cinco, reconstituem a história, compondo o fio narrativo;
os cenários situam os ambientes, marcando as mudanças de atmosfera e localizando os acontecimentos;
e as falas representam uma intervenção do poeta- narrador , tecendo comentários e convidando o leitor a refletir sobre os fatos revividos no relato.
            Os romances não são dispostos na seqüência cronológica dos acontecimentos; ora aparecem isolados, ora constituem-se em verdadeiros ciclos (o de Chica da Silva, o do Alferes, o de Gonzaga, o da Morte de Tiradentes , o de Gonzaga no exílio, o de Bárbara Heliodora , o da Rainha D. Maria).
            Três fragmentos de falas:
                        Fala Inicial
                        Não posso mover meus passos
                        Por esse atroz labirinto
                        De esquecimento e cegueira
                        Em que amores e ódios vão:
                        - pois sinto bater os sinos,
                        percebo o roçar das rezas,
                        vejo o arrepio da morte,
                        à voz da condenação;
                        - avisto a negra masmorra
                        e a sombra do carcereiro
                        que transita sobre angústias,
                        com chaves no coração;
                        - descubro as altas madeiras
                        do excessivo cadafalso
                        e, por muros e janelas,
                        o pasmo da multidão.
                        ...
                        Ó meio-dia confuso,
                        ó vinte-e-um de abril sinistro,
                        que intrigas de ouro e de sonho
                        houve em tua formação?
                        Quem condena, julga e pune?
                        Quem é culpado e inocente?
                        Na mesma cova do tempo
                        Cai o castigo e o perdão.
                        Morre a tinta das sentenças
                        e o sangue dos enforcados ...
                        - liras, espadas e cruzes
                        pura cinza agora são.
                        Na mesma cova, as palavras,
                        e o secreto pensamento,
                        as coroas e os machados,
                        mentiras e verdade estão.
                        ...
                        Não choraremos o que houve,
                        nem os que chorar queremos:
                        contra rocas de ignorância
                        rebenta nossa aflição.
                        Choraremos esse mistério,
                        esse esquema sobre-humano,
                        a força, o jogo, o acidente
                        da indizível conjunção
                        que ordena vidas e mundos
                        em pólos inexoráveis
                        de ruína e de exaltação.
                        Ó silenciosas vertentes
                        por onde se precipitam
                        inexplicáveis torrentes,
                        por eterna escuridão!

Características do Romanceiro
            a) A herança simbolista e o espiritualismo: um ar de mistério, de crença no imaterial, no extraterreno, perpassa todo o poema. O culto do etéreo, das palavras aéreas marca a ânsia de dar forma ao informe. Expressões como: atroz labirinto de esquecimento, mistério , esquema sobre-humano, silenciosas vertentes, inexplicáveis torrentes instauram um halo espiritualista de crença no imaterial.
            b) A utilização do redondilho maior (verso heptassilábico ), sem rimas externas regulares (versos brancos), e a exploração da camada sonora, através de aliterações e assonâncias , conferem à Fala Inicial um tom enfático, declaratório , reforçado pelas exclamações e interrogações.
            c) O tom evocativo: o mergulho no passado, no atroz labirinto do tempo, nas ressonâncias incansáveis de Vila Rica revela a ânsia da procura de um significado para os fatos: Ó meio-dia confuso / ó vinte-e-um de abril sinistro, / que intrigas de ouro e de sonho / houve em tua formação? / Quem condena, julga e pune? Quem é culpado e inocente?. É como se a poetisa, evocando Tiradentes na força, questionasse a casa do martírio. Foi a ambição do ouro? Foi o sonho de liberdade que iluminou aquela gente?
            d) O tom inquiridor: o clima de mistério e ansiedade, as lacunas históricas incontornáveis e a busca de um sentido para os fatos projetam-se nas interrogativas que surgem a cada momento. Revelando o mistério que envolve até hoje o "embuçado" e a morte de Cláudio Manuel da Costa, o Romance XXXVIII é composto só de interrogações. O embuçado teria sido um mensageiro mascarado, disfarçado, que viera para tentar salvar Cláudio Manuel da Costa: Homem ou mulher? Quem soube? / Veio por si? Foi mandado? / A que horas foi? De que noite? / Visto ou sonhado?.
            e) A dualidade: reflete a ambivalência ou ambigüidade que caracterizam as ações do homem - herói e traidor, ódio e amor, punhal e flor, bons e maus, riqueza e miséria. Observe, na Fala Inicial: amores x ódios (v.4); intrigas de outo e de sonho; (v.19); culpado x inocente (v.22); castigo x perdão (v.24), coroas x machados (v.31); mentira x verdade (v.32); ruínas x exaltação (v.43).
            Ganham relevo as passagens que refletem a dualidade entre a justiça e a tirania, entre a liberdade e a opressão:
                        Em baixo e em cima da terra
                        o ouro um dia vai secar.
                        Toda vez que um justo grita,
                        um carrasco o vem calar.
                        Quem sabe não presta, fica vivo,
                        quem é bom, mandam matar. (Romance V)
                        Ai, terras negras d´África,
                        portos de desespero...
                        - quem parte, já vai cativo;
                        - quem chega, vem por desterro. (Romance LXVII)
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