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terça-feira, 20 de julho de 2010
Poesia Atemporal - Manuel Bandeira
Postado por Marlon às 20:45
A poesia está na vida; o poeta é aquele que é
sensível o suficiente para captá-la. No momento da percepção, fronteiras
de tempo e espaço deixam de existir; o Mundo Sensível é tão somente o
ponto de partida para o poeta alcançar o Inteligível. Para tanto, nem
sempre é necessário haver processos sofisticados. A vida é esse
cotidiano mesmo, feito de vida e morte, tristeza e alegria, captado e
guardado no arquivo de memória. "Profundamente" é um desses flagrantes
captados por Bandeira, poeta da simplicidade. Na memória do eu-poético,
não há delimitação de tempo e espaço; ambos se misturam num único
instante, aqui transformado em instante poético. Interrompendo o curso
natural das coisas, empreende uma viagem na memória, resgatando, num
tempo longínquo, a infância ("Quando eu tinha seis anos"), cujos
elementos já se evidenciam na primeira estrofe: "noite de São João",
"bombas luzes de Bengala", "Ao pé das fogueiras acesas". As lembranças
trazem elementos sugestivos de alegria e de luz: noite iluminada por
"luzes de Bengala" e "fogueiras acesas". Davi Arrigucci Jr., em sua obra
Humildade, Paixão e Morte, devido a esse recurso utilizado por
Bandeira, afirma que este poema é "fortemente imagético e pictório"; as
lembranças surgem de cenas vivenciadas no passado. Assim, o que traz
saudade são os elementos mais simples e cotidianos do interior. Bandeira
resgata a sua infância em Pernambuco (procedimento também presente no
poema "Evocação do Recife", onde as mesmas pessoas evocadas aparecem).
Acerca disso, em entrevista dada a Pedro Bloch, o autor afirma: "Do
Recife tenho quatro anos de existência consciente, mas ali está a raiz
de toda a minha poesia. Quando comparo esses quatro anos de meninice a
quaisquer outros quatro anos de minha vida é que vejo o vazio dos
últimos." Não são apenas esses os índices do substrato autobiográfico do
poeta; as personagens da penúltima estrofe também são reveladores -
"Totônio Rodrigues", "Tomásia", "Rosa". Este tempo da duração ("la
durée") - segundo terminologia de Benedito Nunes, em sua obra O Tempo na
Narrativa - vem numa única avalanche de lembranças, como se, nesse
tempo de memória, não houvesse possibilidade de "organizar" as coisas,
linearmente falando. Isto é evidenciado pela enumeração caótica - tão
característica do Modernismo - reaproveitada pelo poeta; o eu-poético
não usa a vírgula no poema inteiro, nem uma só vez (as únicas formas de
pontuação utilizadas são o ponto final e a interrogação, encerrando as
etapas das reflexões); em todo o percurso reflexivo, as lembranças
amontoam-se em "flashes" de memória: "Havia alegria e rumor Estrondos de
bombas luzes de Bengala Vozes cantigas e risos." Esse processo se
estende também à enumeração de ações, pois os verbos, isolados em versos
diferentes, demarcam o ritmo do texto: "Dançavam / Cantavam / E riam".
Toda essa enumeração aparece disposta em verbos no pretérito,
confirmando a visão do passado, como foi antes mencionado: "adormeci",
"Havia", "despertei", etc. Desta maneira, os tempos verbais ligam-se às
lembranças da infância num tempo de duração, o tempo, segundo Benedito
Nunes, realmente vivenciado, tão saudosamente, que, num movimento de
retrocesso, o passado transforma-se em "ontem". Ao longo da viagem no
tempo, a alegria vai ficando para trás. Ao acordar, "no meio da noite",
os ruídos e vozes já não existem ("Não ouvi mais vozes nem risos"); a
única lembrança sensorial existente é visual ("Apenas balões / Passavam
errantes"), mas é silenciosa ("Silenciosamente / Apenas de vez em quando
/ O ruído de um bonde / Cortava o silêncio"). Toda essa saudade faz
aflorar o sentimento de solidão: sozinho, ele vê balões errantes; na
ausência de ruídos, também revela-se a ausência dos entes queridos
("Onde estavam os que há pouco / Dançavam / Cantavam / E riam / Ao pé
das fogueiras acesas?"). Davi Arrigucci Jr. acrescenta o fato de que a
ênfase à solidão é dada pelos próprios termos escolhidos: "Torna-se
inevitável uma ênfase sugestiva sobre os termos separados, cuja
ressonância semântica aumenta com o isolamento, como é o caso, além do
advérbio ‘silenciosamente’, do poderoso ‘errantes’, cujo significado se
intensifica e se expande pela suspensão final do verso, acompanhando a
morosa subida dos balões com a nota profunda de uma ilimitada e
desgarradora incerteza, fazendo com que esses pontos luminosos, últimos
sinais de vida da festa, sejam vistos em câmera lenta, perdendo-se
silenciosa e definitivamente na noite." Todo o eixo temático do poema
liga-se ao modo de trabalhar o tempo: o passado, transformado em
"durée". Dessa transformação, a consciência desperta: "Quando eu tinha
seis anos / Não pude ver o fim da festa de São João / Porque adormeci",
em contraposição a "Onde estão todos eles? - Estão todos deitados /
Dormindo / Profundamente". Enfim, o desígndorio, gerado pelo fluxo de
consciência: no passado, ele adormeceu, enquanto todos estavam na festa;
hoje, eles adormeceram, enquanto ele se mantém desperto. É a
consciência de estar deslocado, em desarmonia com o restante. O verbo
utilizado - "adormecer" - também muda de acepção ao longo do poema. De
início, em sentido denotativo, significa "estar dormindo"; no final,
conotativamente, liga-se à idéia de morte, o que se comprova na ausência
das pessoas pertencentes ao universo infantil já citadas.
"Profundamente" é a palavra que acompanha todo o poema: encontra-se no
título, no meio e também o encerra. É um advérbio que sugere não apenas
modo, mas, principalmente, intensidade. Mesmo de forma desarmoniosa, a
intensidade é elevada, o que reforça, novamente, o conceito da duração.
Reforça-se, assim, a vivência que envolve o processo das reminiscências:
é como, na poesia, a morte torna-se vida na transmutação poética do
instante.