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domingo, 11 de julho de 2010
Pareceres do Tempo - Herberto Sales
Postado por Marlon às 13:25
Usando uma linguagem
culta, barroca (exagerada), carregada de erudição, nos moldes dos
cronistas portugueses, Herberto Sales nos conta a saga das famílias
Golfão e Rumecão, instalados no interior da Bahia, precisamente em Cuia
D’Água, próximo a Cachoeira e São Félix. Segundo o autor, o tempo passou
sobre essas famílias e firmou os seus pareceres (a impressão que ficou
de suas odisséias) e, sendo a epopéia de relevo, não deve ser desprezada
ou ignorada. Por isso ele nos contará essa história. Herberto se coloca
como porta-voz de Braulino José Golfão, o Ancião, um dos filhos gêmeos
do casal Policarpo e Liberata que relatou a história dos seus pais ao
autor; segundo Herberto Sales, causa estranheza a lucidez de Braulino,
uma vez que este Ancião já contava com 132 anos e sabia detalhadamente
dos fatos narrados no livro. A estrutura do romance é incomum, pois os
capítulos são divididos em 54 livros numerados em algarismos romanos.
Cada livro traz um argumento, espécie de sinopse, de resumo do que se
narrará no capítulo. Obviamente, muito da narrativa está antecipada nos
argumentos, mas a habilidade do narrador, que é onisciente, faz que ele
seja limitado em alguns momentos do argumento, visando a criar
expectativa no leitor. O próprio autor escreve o seu prefácio, dizendo
pretender com isso, ser rigoroso consigo, vez que amigos costumam ser
muito benevolentes com os prefaciados. Usa o prefácio para falar do
prefácio o que é um excelente exercício metalingúistico. Ao longo da
narrativa, o autor se coloca como um "contador de histórias", como se o
leitor estivesse ao lado dele e, por isso, necessitasse tantas vezes
checar, através da função fática da linguagem, se a mensagem está
chegando ao receptor sem ruído. É muito freqüente esta verificação, a
exemplo de: "Sabei que Policarpo Golfão chegou à pensão às 12 horas".
Esta postura de contador de casos força o autor a usar uma incomum, mas
correta construção gramatical no que tange ao uso do possessivo dele(s) /
dela(s). Como emissor (narrador) e receptor (eu ou você) estão próximos
e o narrador fala se dirigindo ao leitor, para evitar ambigüidade, usa
esta estrutura: "Sabei que Policarpo Golfão chegou com seu cavalo dele".
Essa construção, pouco usual, está prescrita como correta, de acordo
com a norma culta gramatical e deve ser usada toda vez que, numa
sentença, o uso do possessivo implicar ambigüidade quanto ao possuidor
do elemento referido. O uso de inversões sintáticas (hipérbatos) é uma
constante, haja vista que essas inversões aproximam a língua portuguesa
do latim clássico, e o autor pretende uma narrativa no estilo cultista
(linguagem rebuscada, sinuosa, carregada de erudição). A narrativa
configura o texto como pertencente ao gênero épico/narrativo da
literatura. O narrador-observador (foco narrativo em 3a pessoa quase na
totalidade das vezes) mostra-se onisciente / onipresente, mas impassível
diante dos fatos, vez que ele narra o que já aconteceu, sem
possibilidade, portanto, de modificar algo na história narrada. No
entanto isto não impossibilita a veia irônica de que é dotado o emissor.
Apesar de ser apenas porta-voz do Ancião, Herberto Sales emite juízo de
valor frente ao narrado, incorrendo na ironia sutil, que passaria
despercebida ao leitor desavisado. Com maestria, enfatiza, por exemplo, a
"piedade cristã" do capelão dos navios negreiros que, acompanhando o
percurso dos negros naquela fatídica viagem – África/ Brasil – evitava
que os negros mortos neste trajeto ficassem sem a palavra de Deus. (O
Capelão tinha, como recompensa, direito a cinco escravos para serem
negociados). Muitos dos negros morriam durante o percurso, mas a
presença de Capelão garantia que eles morressem na fé cristã, haja vista
que eram batizados dentro dos navios. O argumento histórico da
narrativa é o seguinte: Policarpo Golfão, filho único de um fidalgo
português que morreu numa batalha servindo ao Rei de Portugal, recebeu a
título de indenização, uma sesmaria no Brasil, no interior do estado da
Bahia, precisamente junto a Cachoeira e São Félix, lugar conhecido como
Cuia D’Água. (Crítica à Metrópole que enxergava a Bahia como feudo da
nação lusa.). Policarpo era proprietário de uma bela quinta em Portugal.
Ao saber da doação do Rei, vendeu sua quinta e junto com um primo –
Quincas Alçada – rumou para o Brasil visando a tomar posse do que era
seu. Necessário é dizer que essa indenização do Rei veio a calhar,
porque o filho do fidalgo era homem afeito a aventuras e, certamente,
aqui, poderia participar de diversos feitos incomuns. Chegando ao
Brasil, Policarpo e seu primo bastardo ficaram hospedados numa estalagem
de um compatriota, Luis Vicente de Almeida, vulgo Almeidão, um homem de
físico avantajado, daí o apelido. Esse português teria importância
vital para os acontecimentos vindouros, e o autor nos antecipa isto, mas
pretende esclarecer o assunto somente no momento aprazado (o escritor,
mais ou menos à moda de Machado de Assis, conversa com o leitor,
comentando, emitindo opinião sobre o assunto de que trata ou tratará).
Assim que chegaram a Salvador, como eram cristãos, dirigiram-se à
Igreja. Em seguida foram recebidos pelo Governador-Geral que
oficializou, em cerimônia, a referida doação da "imensa sesmaria. No
mesmo dia, Policarpo recebeu do governador o título de capitão-mor, o
que lhe garantiria plenos direitos para reger sua sesmaria como se dela
fosse o próprio Rei.(Espécie de senhor Feudal) No dia seguinte,
Policarpo Golfão e Quincas Alçada foram ao Chega-Nego, lugar onde
aportavam os navios negreiros que traziam negros da Costa da Mina, para o
Brasil. Os dois portugueses precisavam de mão-de-obra para trabalhar na
sesmaria. Almeidão os acompanhou . Antes de irem ao Chega-Nego,
passaram na Igreja de Santo Antônio da Barra. (Ironia à prática cristã:
antes de comprar homens para escravizá-los, vão receber a bênção de Deus
para garantir o sucesso da empreitada.) Os dois primos souberam,
através de Almeidão, que São José era uma espécie de patrono dos
traficantes de escravos, vez que do alto daquele outeiro da Igreja de
Santo Antônio da Barra, o casto esposo de Maria velava pela sorte dos
navios que bravamente se arriscavam ao mar, rumo à África, em tão subida
missão. (Ironia do autor e crítica ao uso equivocado dos preceitos
cristãos adaptados a interesses vis). O Almeidão lhes contou que
traficar negros não era vergonhoso para o português ou até para os
colonos, e que até havia uma espécie de Irmandade protetora desses
comerciantes em tão honrado ofício. O próprio Almeidão complementava sua
renda com este comércio e esperava para aquele dia a chegada da corveta
Augusta. Esclareceu os trâmites do comércio: os traficantes baianos,
forneceram ao capitão da corveta Augusta uma grande quantidade de fumo
comprado nas plantações de tabaco da Bahia. Este capitão levou o tabaco
para comercializar em terras "d’além mar" e, em pagamento aos amigos,
trouxe escravos da África em número anteriormente acertado e suficiente
para ficarem quitados na transação. Infelizmente, desta vez, a corveta
Augusta não apontou no Chega-Nego, pois estava com diversos negros
contaminados de varíola, febres epidêmicas, sarna e doença dos olhos. O
navio ficou afastado do porto, de quarentena imposta pela Inspeção de
Saúde. Como sempre acontecia quando havia doentes a bordo, a embarcação
ficou em Monte Serrat, aguardando que os enfermos melhorassem. Desta
forma, os dois primos não puderam comprar escravos do Almeidão, mas no
dia seguinte foram aguardar outra corveta, a Salve-Rainha, de onde
compraram quinze escravos ao todo; esses escravos faziam parte de um
lote pertencente ao Ouvidor-Geral, Teodoro Rumecão. (Notar a crítica
irônica à Igreja Católica: os dois navios negreiros têm nomes sagrados –
corveta Augusta – ligada a anjo; corveta Salve-Rainha – louvação à
Virgem Maria). Herberto aproveita para criticar , sob a forma elogiosa –
na verdade, uma grande ironia – o fato de os portugueses serem
habilidosos na arte de "socar" tantos escravos – quinhentos – numa
corveta muito pequena. Corria até uma legenda de que os navios
portugueses eram pequenos por fora, mas grandes por dentro, tendo
reconhecido este feito os holandeses , nesta época, seus rivais, neste
comércio. A perícia náutica dos portugueses contribuía para isso:
Holandeses transportavam trezentos escravos em grandes navios; já os
portugueses, em pequenas caravelas, transportavam quinhentos homens.
(Evidencia-se, aí, uma grande e irônica crítica ao povo português, avaro
e desumano). O capelão de bordo do Salve-Rainha, além de ser parente do
Ouvidor-Geral, Teodoro Rumecão, também foi amigo de infância de Quincas
Alçada. Reencontraram-se, então, o que muito contribuiu para que os
laços de amizade e apreço entre Quincas Alçada, Policarpo Golfão e os
Rumecões fossem estreitados. Pe. Salviano contou a Quincas ter sido
ajudado por dona Eponina, sua madrinha que, em carta ao parente Ouvidor
indicou-lhe Salviano como padre para a colônia. Quincas confidenciou que
também chegara à colônia graças à bondade do primo Policarpo Golfão.
(Todos são oportunistas. É deste fio que se formará o tecido social
brasileiro.) Sabendo que Policarpo havia sido condecorado com a medalha
de capitão-mor, Padre Salviano julgou por bem levá-lo a visitar seu
tio-avô, o Ouvidor-Geral, Teodoro Rumecão, em cuja casa habitualmente
esse padre se hospedava. Depois da escolha de quinze bons negros para
escravos, fortes como animais, rumaram para a casa do Ouvidor, conhecida
na Bahia como o Solar dos Sete Candeeiros. Assim que chegaram ao solar,
Policarpo viu Liberata, a filha solteira do Ouvidor e logo se sentiu
atraído pela beleza desta moça. O Padre, observando que a moça prendia a
atenção de Policarpo, explicou-lhe quem ela era. A moça desapareceu,
enquanto o Padre mandava um escravo da casa guardar seus pertences num
quarto do Solar dos Sete Candeeiros, onde costumava se hospedar. Foram
recebidos pelo Ouvidor, muito solicitamente. Enquanto isto acontecia,
Policarpo tinha o pensamento voltado para a bela jovem que havia visto.
Conversaram sobre a colônia, sobre os preços dos escravos de um modo
geral e do tempo requerido para o translado África/Brasil: mais ou menos
quatro meses. Os negros chegavam em boas condições, na maioria das
vezes, o que gerou uma carta do próprio Príncipe D. João, enviada ao
então Governador, Francisco da Cunha Menezes, louvando a excelência
deste surto de progresso no tráfico de escravos na Bahia. (Ironia do
autor ao realçar um feito tão vil dos portugueses. É como se a carta de
um Rei pudesse legitimar ato tão desumano). Concordando com o que
dissera o Vice-Rei, Conde de Sabugosa em 1731, Policarpo reconheceu,
durante sua conversa com o Ouvidor-Geral, que sem escravos, a colônia
não poderia desenvolver seu trabalho na lavoura das fazendas de cana,
tabaco e roças de mandioca. Policarpo comprou dez escravos do Ouvidor e
cinco do Padre Salviano, todos provenientes do Salve-Rainha. O padre
ficou feliz, pois todos já haviam sido batizados e, portanto, já tinham
nomes de gente (crítica à aculturação do negro pelo europeu – além da
crítica à escravidão). Herberto Sales chama a atenção do leitor para um
molecote chamado Estevão e demais mulheres e homens jovens que sorriam
em subserviência ao seu senhor (Policarpo). O Padre Salviano Rumecão
disse a Policarpo enquanto observava os negros: "Agora é casá-los. Vão
procriar, fácil e muito. Com dois casais desses produz-se toda uma
escravatura." Os negros sorriam porque aprenderam que deveriam sorrir
quando o padre lhes sorrisse. Havia uma escrava jovem que, por ser bela,
Policarpo guardou o seu nome: Gertrudes. O autor antecipa que ela
haveria de se tornar muito conhecida, mais adiante. (É marca do romance
antecipar fatos e avisar da importância de certas personagens).
Policarpo Golfão soube que sua sesmaria ficava situada numa região –
Monte Alto – onde um irmão de Liberata – Sezefredo Rumecão – amante do
campo e das letras, chamado na região de O Fidalgo, administrava uma
fazenda do seu pai, produtora de cana-de-açúcar e fumo. Isto lhe foi
dito pelo Ouvidor-Geral. Quando saiu, neste dia, do Solar dos Sete
Candeeiros, Policarpo vislumbrou Liberata à distância e teve a certeza
de amá-la. Chegando à pensão de Almeidão, o Capitão-Mor tomou
conhecimento de que Rosa, esposa do Almeidão, era íntima de Liberata,
pois era sua costureira. Coberto de honradez, propôs a Rosa – mulher
muito digna – que levasse até à donzela uma carta de amor, pedindo-a em
namoro. Policaro e Quincas saíram da hospedaria de Almeidão para viajar,
mas antes o Capitão pagou regiamente sua estada por lá. Antes da
partida assistiram à missa na Sé, oficiada pelo Padre Salviano, que se
queixava de más notícias. O Rei de Portugal havia mandado adaptar
(limitando) a lotação dos navios negreiros a depender da capacidade de
cada navio. Obviamente, o padre ficou possesso, porque, pelas leis do
Reino, não poderiam mais trazer homens amontoados; trariam apenas
aqueles que pudessem ser transportados com um mínimo de condição de
sobrevivência. (Forte crítica à Igreja, visto que o padre ficou
contrariado com o prejuízo). Notar a pressão da Inglaterra sobre a
Metrópole. Depois deste contato com o padre, Policarpo, Quincas e
Almeidão foram se encontrar com um homem – Mestre Manoel – um competente
navegante que singrava as águas da Baía de Todos os Santos. Um
descendente desta personagem está no romance Jubiabá, de Jorge Amado
(intertexto). Interessante é notar que Herberto Sales é autor neomoderno
– publicou Os Pareceres do Tempo em 1997 , enquanto Jorge Amado é autor
da 2a fase moderna, tendo publicado o livro Jubiabá em 1935 . Como
Herberto Sales ambienta o seu romance no século XVIII, e Jorge Amado no
século XX, apesar da precedência literária da publicação de Jorge Amado,
num fingimento poético, Herberto Sales diz que "o seu" Mestre Manoel é
antecedente dos demais. Caracteriza-o como um português que vivia
amigado com uma mulher negra (sua escrava, de nome Maria). Tinham seis
filhos, dentre os quais apenas um era homem: Manoelzinho, uma criança já
afeiçoada às artes da navegação –. Mestre Manoel disse aos conterrâneos
que aquela era a sua Maria – concubina com quem procriava a sua prole
baiana, em doce mestiçagem (referência às nossas matrizes étnicas, à
formação do povo brasileiro). Policarpo estranhou o nome do barco
"Viajante sem Porto". O Mestre disse-lhe que este era o nome de um outro
barco que pertencera ao seu pai. Confessou a Policarpo desejar que seu
único filho homem, Manoelzinho, seguisse a tradição da família. (Na
verdade literária, esse desejo se transforma em realidade, haja vista
que o Mestre Manoel, personagem de Jubiabá, é descendente deste
navegador que aparece em Os Pareceres do Tempo). Os escravos comprados
por Policarpo Golfão foram trazidos acorrentados pelas ruas – costume da
época – até o barco do Mestre Manoel; eram puxados pelo capitão do mato
de Teodoro Rumecão, homem incumbido de levá-los e deles tomar conta até
chegarem à embarcação. Quando chegou ao barco, Policarpo se encontrou
com um primo do Mestre Manoel, o José do Vale, que, a partir daí, seria o
Capitão do Mato de Policarpo Golfão. Seguiram viagem. O autor, num
exercício lúdico, deseja que num futuro que há de vir ("Praza Deus":
linguagem dos cronistas portugueses) possa haver um escritor que se
encante com as belezas da Bahia e cante-as divulgando-as mundo afora.
"Prevê" a possibilidade de esse poeta falar talvez de um novo "Viajante
sem Porto" e de um novo Mestre Manoel, – isso acontece com Jorge Amado,
em Jubiabá –. Assim, a "previsão" de Herberto, na verdade, é uma
"pós-visão". Os viajantes chegaram à Cachoeira, onde haveriam de tomar
outra embarcação mais tarde. Mestre Manoel retornou, enquanto os
escravos foram para uma senzala pública, amarrados por cuidado e uso. Um
espanhol, chamado De La Vara tomaria conta dos negros enquanto os
demais ultimariam preparativos para seguirem viagem. Passaram-se nove
dias entre compra de animais e objetos necessários à instalação da casa
na sesmaria. Contrataram o Mestre de Obras Joaquim Dinis e mais um
auxiliar de Capitão do mato, o Bertoldo, português da Ilha da Madeira. O
filho do Joaquim Dinis, Serafim, também viajaria na comitiva. O padre
Rapalho, exímio pregador contra o Demônio no Recôncavo, benzeu a
comitiva e partiram com cavalos e carros de bois repletos de mantimentos
e escravos muito apertados. Transcorridos vinte e cinco ou trinta dias,
chegaram à Vila de Monte Alto. O jesuíta, Padre Gumercindo, há muito se
ocupava da pacificação dos índios maracás, habitantes deste território.
Esse padre, português da Companhia de Jesus, mostrava-se bondoso com os
índios, mas exercia sua bondade com sabedoria medida para pacificá-los.
O padre Salgado era também seu aliado. Policarpo visitou Sezefredo
Rumecão, o Fidalgo, na companhia do padre Gumercindo. Ficaram amigos e o
Fidalgo disse conhecer as terras da sesmaria de Policarpo que faziam
divisas com as suas em Cuia d’Água. Foi convidado a pernoitar com o
Fidalgo, juntamente com os padres, na agradável residência de Sezefredo.
O Fidalgo acompanhou Policarpo, na manhã seguinte, a uma visita pelas
terras da Vila. Ao ouvir o badalar dos sinos da missa, Policarpo,
contrito, prometeu a si mesmo mandar construir uma igreja naquele local.
Parando sobre o vale das terras de Policarpo, observaram ser aquela a
vista mais bela da região, coberta de arbustos em flor. Em especial
havia um imenso pé de Ipê Amarelo que, florindo, cobria o chão como
tapete natural. Policarpo encantou-se pela árvore e resolveu ao lado
dela construir sua casa, no alto de uma bela colina. Notava-se, nas
terras, uma trilha e Sezefredo disse a Policarpo que Liberata ficava
horas a apreciar a paisagem junto ao Ipê quando ali esteve a passeio. A
coincidência tocou fundo o coração apaixonado de Policarpo. Conversaram
sobre pecuária, uma das fixações do Capitão-Mor. Disse o Fidalgo que
tinha algum gado em suas terras, bem como pastagens. Policarpo avistou
do alto algumas cabanas indígenas em suas terras. Reclamou e ouviu do
Fidalgo que nada havia o que temer. Eram índios pacificados pelos
jesuítas. Antes, eram ferozes, atiravam e matavam muitos portugueses
ilustres, mesmo tendo estes apresentado aos silvícolas seus documentos
de posse de terra cedidos pelo Rei. Policarpo reconheceu o trabalho
nobre executado pelos jesuítas. Mesmo assim, ainda ficou temeroso frente
aos silvícolas, até saber que a maioria dos fazendeiros tinham índios
como trabalhadores de suas terras, trabalhando em sistema de "meia",
embora julgassem os negros mais rijos. Começaram as obras de construção
da casa, que em pouco tempo ficou pronta. Apesar de ter trazido dinheiro
suficiente de Portugal, Policarpo passaria por apertos financeiros,
pois era perdulário e gastava sem reservas. O Fidalgo, pouco a pouco,
vai enredando Policarpo em dívidas, deixando para receber o que fornecia
ao Capitão-Mor em outra ocasião. Trazia para Policarpo gado e demais
objetos para a construção da casa, sempre insistindo que o pagamento
fosse deixado para depois. Sem o saber, Policarpo estava sendo vítima de
uma trama do Fidalgo que intentava deixá-lo empobrecido para que
tivesse necessidade de vender (ao Fidalgo) parte das terras mais
produtivas da sesmaria, dotadas de reservas de água em profusão. O
Capitão-Mor tornava-se bem quisto nas redondezas, pois era pródigo.
Quando passeava pela vila montado em um belo cavalo, era uma figura
carismática, o que fazia o povo cantar ao vê-lo: "Lá vai Policarpo
Golfão No seu cavalo alazão" O capitão foi conhecer o acampamento dos
índios que, cabisbaixos, saudavam o chefe, receptivos, embora houvesse
uma certa tensão no ar. Trabalhavam na lavoura e já haviam sido
batizados. Policarpo comunicou a Quincas Alçada, reservadamente que
Quincas precisava partir para a Bahia. Entregou-lhe uma carta atada a um
laço. Pediu-lhe que fosse entregue a um homem de confiança. Sabia que
esta carta, passando por Almeidão e Rosa, chegaria a Liberata. Tudo em
segredo. Ele havia resolvido escrever à donzela Liberata, reiterando seu
amor e prometendo ir à Bahia, mais tarde, a negócios como dizia, mas
sabia que era para vê-la. Partindo Quincas, Policarpo assumiu sozinho o
comando da fazenda. Tudo transcorria normalmente. Uma das escravas, a
Gertrudes, fazia queijos na cozinha quando foi assediada por Policarpo
que, atônito, via em Gertrudes a amada Liberata. Chegaram a se beijar
mas Policarpo saiu assustado pela queda moral por que passara.
Aproveitou Policarpo o tempo para estreitar laços com os maracás. Padre
Gumercindo, muito próximo dos índios, apresentou-o como o legítimo dono
das terras onde habitavam os maracás. O Fidalgo sempre se aproximava
para apreciar as terras de Policarpo. Embora não demonstrasse, nutria
muita inveja por elas. Durante a construção da casa, um trabalhador de
Policarpo foi picado por uma cobra. Ao tentar matá-la o capitão se
desequilibrou emocionalmente, demonstrando extremo pendor para a
violência. Esse aspecto da personalidade do Capitão-Mor ficará patente
no clímax do romance. Padre Gumercindo chegou para apresentá-lo aos
maracás como senhor deles. (Há forte crítica à Igreja Católica). Um
índio – Nicodemus – (ex-Siminu), por entender a língua dos brancos,
serviu como porta-voz de Policarpo. Disse aos outros índios o que o
padre desejava e Policarpo queria que os índios ouvissem. "Este é o seu
Senhor, ele é bom; deverão plantar em meia; se houver sobra na lavoura,
ele comprará." Depois de algum tempo chegou à Cuia d’Água o Quincas com
uma carta de Liberata aquiescendo com o namoro. Policarpo resolveu ir à
Bahia de repente, logo após a festa da cumeeira. Os índios compareceram à
festa junto com os negros. Desconfiados, os índios não dançaram durante
os festejos da casa grande, ao contrário dos negros que cantavam e
dançavam, usando cânticos africanos. Durante esta festa, Quincas se
aproximou da bela índia Iuru. Perguntou a Nicodemus quem era ela (aqui,
ele não é citado como ex-Siminu, como se houvesse reagido e se tornado
de novo índio frente à ameaça à honra da índia-irmã). Nicodemus disse:
"Ela é filha da índia Iacina. É minha irmã". Quincas costumava sumir,
atrás da índia Iuru. A vida continuava a mesma, com escravos sendo
castigados pelo capitão do mato. O negro Estêvão demonstrava nutrir uma
paixão por Gertrudes, que nada demonstrava sentir por ele. Esta negra
revelava uma paixão mal contida pelo patrão, e Estevão percebeu isto
guardando rancor frente a esta trama urdida pelo destino. Estêvão notou a
paixão de Gertrudes, ressentiu-se, mas nada pôde fazer. Apenas existia a
revolta e a inveja. Um dia, Quincas foi ao aldeamento dos maracás e
chegou à cabana de Nicodemus (ex-Siminu). Sabia que ali encontraria Iuru
(batizada Joana). Não a encontrou e soube por Iacina que a índia fora
ao rio pescar. Quincas a procurou, perguntou se queria se casar com ele e
ela procurou fugir dele, dizendo ser ele homem branco. Mesmo que
quisesse, não poderia se casar com um branco, pois a tribo não
aceitaria. A índia fugiu como animal assustado, e Quincas ficou cada vez
mais ligado a ela. Depois de algum tempo, houve a festa de Senhor dos
Passos, à qual todos compareceram. A imagem da índia perseguia Quincas,
enquanto Policarpo dividia-se entre a idealização de Liberata e a
lascívia que nele despertava a negra Gertrudes. Policarpo viajou à Bahia
sem deixar claro o motivo. Precisava resolver coisas urgentes. A
sesmaria ficou sob o comando de Quincas. Ao chegar a Salvador, o capitão
procurou Liberata e teve alguns encontros com ela na Igreja da
Barroquinha. Ele queria pedi-la em casamento. Policarpo pretendia trazer
tropas de gado do Piauí e Maranhão em parceria com Garcia D’Ávila. Fez
contato com Garcia D’Ávila e planejou viajar com vaqueiros levando
Almeidão que, em virtude de o tráfico de negros estar em baixa, viu a
chance de ficar rico com o gado tropeiro. Policarpo se encontrou com
Liberata e o amor puro dos dois cresceu. O Capitão-Mor saiu em longa
viagem, foi bem sucedido nos negócios e retornou mais rico. Todos
estavam bem de dinheiro. Policarpo doou ao padre Salviano grande soma em
dinheiro para que ele fosse a Roma encomendar uma grande imagem de
Senhor dos Passos. Policarpo, agora, resolveu pedir Liberata em
casamento. Ouviu de Teodoro Rumecão que a moça já estava prometida a um
primo, médico, em Portugal. Decepcionado, tramou a fuga com ela. Pediu a
Rosa, esposa de Almeidão, que fizesse um enxoval perfeito para uma
sobrinha (de Policarpo) que vivia em Portugal. Disse a Rosa que a moça
tinha o corpo de Liberata e que a costureira poderia tomar por ela a
medida e o gosto. Pagou antecipada e regiamente a Rosa que se esmerou,
crendo no Capitão. Policarpo tentou agir de outra forma. Recorreu aos
tios de Liberata mas nada resolveu. O pai da moça não permitia o
casamento. Ela, muito consciente de sua situação, fugiu da casa dos
pais, durante uma madrugada, montada num cavalo com o amado. Como ele a
respeitasse, ela ficou hospedada num convento até correrem os papéis
para o casamento. Afinal, casaram-se e só depois disto tornam-se
realmente marido e mulher. A felicidade durou pouco, pois Liberata soube
da morte do pai (de desgosto), ainda durante a sua lua-de-mel. Apesar
disto, mantiveram-se unidos e se amando. Partiram para Cuia D’Água.
Quando passaram pela Vila, chamaram a atenção dos moradores sem saber
por quê. Chegando à fazenda encontraram tudo devastado. Campos
destroçados, a casa queimada, os escravos haviam fugido e os índios
destruíram com furor o que puderam. Dos empregados, ficaram apenas
Gertrudes e o Capitão do Mato José do Vale. Policarpo caiu numa
prostração jamais vista; sua ira era imensa. O Capitão do Mato João do
Vale contou o ocorrido: os índios encontraram Quincas Alçada com Iuru.
Levaram a índia, mataram Quincas e puseram fogo à casa grande. Todos os
escravos aproveitaram para fugir, exceto Gertrudes (por razões bem
particulares) Policarpo entrou em choque e Liberata se mostrou uma
mulher forte. A partir de agora, com humildade, Gertrudes ajudou à
senhora. Policarpo chorou a morte do primo que tinha como irmão e
prometeu uma vingança contra os maracás jamais pensada. Neste meio
tempo, o Fidalgo mandou-lhe cobrar o que era devido. Policarpo
transtornou-se. Mandou construir um túmulo suntuoso para o primo e
arregimentou homens para saírem em caça aos maracás. A partir daí, vai
gastando todo o dinheiro (e era muito) de que dispunha. Saiu em várias
expedições deixando Liberata cada vez mais só. Quando passava, o povo
cantava essa melodia: "Lá vai Policarpo Golfão No seu cavalo alazão Com
Liberata no coração" Liberata engravidou e requereu para si duas pessoas
que lhe faziam companhia e o enxoval. Policarpo voltava cada vez mais
possesso das expedições, pois apesar de chegar perto, não conseguia
pegar os índios. Gastou muito nestas empreitadas e tomou-as como
obsessão. Liberata se sentia mais só e triste. Contou com os empregados e
com a fidelidade de Gertrudes. Policarpo foi obrigado pelo Fidalgo –
neste momento de relações rompidas – a ceder uma parte de suas terras
para quitar dívidas que foram contraídas anteriormente. Ficou desolado.
Saiu, um dia, numa outra expedição. Encontram um índio que, forçado,
levou-os ao acampamento dos maracás. Policarpo conseguiu a sua vingança,
pois foi ele quem matou o índio Siminu – "agora sou Siminu ; Nicodemus é
nome de branco". Ateou fogo no aldeamento, destruindo tudo. Retornou
exultante, muito embora tivesse sido ferido numa perna, o que lhe deixou
uma manqueira como seqüela. Ao chegar em casa soube da tragédia que se
abateu sobre ele. Liberata dera à luz dois meninos: Braulino José (nome
do seu avô paterno) e Joaquim (nome do saudoso Quincas Alçada). Não
resistira à série de desenganos; enfraquecida, morrera poucos dias após o
parto, sem rever o amado. Policarpo, enlouquecido de dor, não sabia o
que fazer. Soube que o Fidalgo dera assistência à irmã. Grato,
procurou-o e ele recusou-se a falar com Policarpo. Abatido, envelhecido,
Policarpo se dedicou a prestar uma homenagem à morta: mandou erguer um
rico mausoléu para a amada. O ferimento na perna de Policarpo se
agravava. Ele não conseguia cuidar dos filhos que ficaram sob a proteção
de Gertrudes – agora,governanta da casa e sua comadre, para impedi-lo
de ser tentado. Recebeu finalmente a imagem de Roma. Houve intrigas para
que a Igreja prometida não fosse erguida,pois a família de Liberata
estava ressentida com o Capitão e era muito influente junto à Igreja, o
que fazia que os padres se opusessem à construção de uma igreja dentro
de um território particular (crítica à Igreja Católica, parcial, mestra
na arte de jogos de interesse). A música popular mudou: "Lá vai
Policarpo Golfão No seu cavalo alazão Levando com devoção A sua igreja
no coração" Gertrudes passou de escrava a gerente dos bens de Policarpo,
mostrando-se uma personagem evolutiva. Cuidava das crianças como se
fora sua mãe. A igreja foi se erguendo aos poucos. Policarpo refugiou-se
em suas lembranças, preferindo a companhia do Ipê. Um dia, Policarpo
sentou-se sob o Ipê Amarelo florido. Abriu as mãos como para abraçar as
flores e foi encontrado morto. Nos registros finais, o autor finaliza o
romance elucidando, neste epílogo, o que aconteceu com as personagens
principais envolvidas na trama. Retorna, então, ao presente, e, numa
espécie de "vôo panorâmico", percorre, hoje, os locais que serviram de
palco para a trama romanesca, dando-nos o resultado do que "viu" por lá.
O autor resume assim o final: Policarpo deixou seu testamento numa
cômoda, no "quarto da finada". Lá, havia uma cópia para o Pe. Gumercindo
e outra para Gertrudes. Nesta carta-testamento, Policarpo deixava uma
quantia em dinheiro para que os dois concluíssem a construção da Igreja
de Senhor dos Passos em Cuia D’Água. Também orientava os dois no sentido
de levantar fundos, com a venda de terras e gado, caso necessitassem de
mais dinheiro para a conclusão da obra, o que não foi necessário, pois
Gertrudes se empenhou em fazer que a construção continuasse com a
organização que era peculiar a esta personagem. Em pouco tempo a
construção ficou pronta. A Igreja demorou de ser inaugurada, porque o
bispo da diocese, D. Abelheira, era amigo fiel de Theodoro Rumecão e do
Fidalgo. Guardava, por isso, rancor de Policarpo e usou a sua força para
impedir que a Igreja fosse reconhecida, alegando que se tratava de uma
construção particular, não cabendo ao Vaticano tomá-la como entidade
cristã, a si vinculada diretamente. O Pe. Gumercindo, por ter se
empenhado na construção e legitimação da Igreja, foi transferido para a
paróquia de Caixa-Prego. Segundo vontade expressa de Policarpo, seu
corpo foi enterrado no pequeno cemitério da fazenda, junto com a sua
inesquecível Liberata. As regiões de Monte Alto e Cuia d’Água acabaram
se fundindo numa só cidade. Ao centro desta cidade numa praça que traz o
nome de Policarpo Golfão, hoje está situada a Igreja de Senhor dos
Passos, erguida pelo Capitão. Os filhos de Liberata e Policarpo tiveram
destinos diferentes: Joaquim Rumecão Golfão foi mandado por Gertrudes à
Cachoeira e depois à capital para estudar. Não se formou. Foi boêmio e
retornava a Cuia D’Água para vender seu patrimônio. Acabou morrendo
tuberculoso num sanatório em São Paulo. Braulino José Rumecão Golfão foi
estudar na capital, formou-se advogado mas jamais exerceu a profissão.
Retornou depois a Cuia D’Água amancebou-se com uma índia maracá, com
quem depois se casou (após o nascimento do oitavo filho). Viveu ali até
os 132 anos. Meses após seu depoimento ao autor, morreu e hoje, como seu
pai, sua mãe e Gertrudes, encontra-se enterrado no cemitério da fazenda
em Cuia D’Água. Personagens Principais Policarpo
Golfão: recebe uma sesmaria na região de Cuia D'água, no interior
da Bahia. Foi uma forma que o governo Português encontrou para
idenizá-lo pela morte do pai. Joaquim Manuel Alçada Golfão(Quincas
Alçada): Primo de Policarpo, vem com ele ao Brasil. Se apaixona
pela índia Iuru. Almeidão: dono de pensão, e depois se torna
sócio de Policarpo em negócios de gado. Teodoro Rumecão:
ouvidor-geral e pai de Liberata. Liberata: mulher amada por Policarpo. Padre
Salviano Rumecão: sobrinho de Teodoro Rumecão, traficava escravos.
Sezefredo e Vitorino Rumecão: negociantes de escravos e donos de uma
olaria. Padre Gumercindo e Salgado: responsáveis pela catequese dos
índios. Nicodemos: índio que foi batizado, pela catequese, e passa a se
chamar Sinimu. Assassina Quincas Alçada. Iuru: índia por quem
Quincas se apaixona, era irmã de Nicodemos. Garcia D'Ávila: homem
mais rico e o maior proprietário de terras do Brasil.