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quinta-feira, 1 de julho de 2010
Papéis Avulsos - Machado de Assis
Postado por Marlon às 10:12
Uma visita de
Alcebíades Carta do desembargador X... ao chefe de polícia da Corte
Corte, 20 de setembro de 1875. Desculpe V. Ex.ª o tremido da letra e o
desgrenhado do estilo; entendê-los-á daqui a pouco. Hoje, à tardinha,
acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no
sofá e abri um tomo de Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu companheiro de
estudos, há de lembrar-se que eu, desde rapaz, padeci esta devoção do
grego; devoção ou mania, que era o nome que V. Ex.ª lhe dava, e tão
intensa que me ia fazendo reprovar em outras disciplinas. Abri o tomo, e
sucedeu o que sempre se dá comigo quando leio alguma coisa antiga:
transporto-me ao tempo e ao meio da ação ou da obra. Depois de jantar é
excelente. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um
pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os tempos
modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a rua do
Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de
graça. Uma verdadeira digestão literária. Foi o que se deu hoje. A
página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades. Deixei-me ir ao sabor
da loqüela ática; daí a nada entrava nos jogos olímpicos, admirava o
mais guapo dos atenienses, guiando magnificamente o carro, com a mesma
firmeza e donaire com que sabia reger as batalhas, os cidadãos e os
próprios sentidos. Imagine V. Ex.ª se vivi! Mas, o moleque entrou e
acendeu o gás; não foi preciso mais para fazer voar toda a arqueologia
da minha imaginação. Atenas volveu à história, enquanto os olhos me
caíam das nuvens, isto é, nas calças de brim branco, no paletó de alpaca
e nos sapatos de cordovão. E então refleti comigo: - Que impressão
daria ao ilustre ateniense o nosso vestuário moderno? Sou espiritista
desde alguns meses. Convencido de que todos os sistemas são puras
niilidades, resolvi adotar o mais recreativo deles. Tempo virá em que
este não seja só recreativo, mas também útil à solução dos problemas
históricos; é mais sumário evocar o espírito dos mortos, do que gastar
as forças críticas, e gastá-las em pura perda, porque não há raciocínio
nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o
próprio autor do ato. E tal era o meu caso desta noite. Conjeturar qual
fosse a impressão de Alcibíades era despender o tempo, sem outra
vantagem, além do gosto de admirar a minha própria habilidade.
Determinei, portanto, evocar o ateniense; pedi-lhe que comparecesse em
minha casa, logo, sem demora. E aqui começa o extraordinário da
aventura. Não se demorou Alcibíades em acudir ao chamado; dois minutos
depois estava ali, na minha sala, perto da parede; mas não era a sombra
impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era
o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico,
trajado à antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava
arengar às grandes assembléias de Atenas, e também, um pouco, aos seus
pataus. V. Ex.ª, tão sabedor da história, não ignora que também houve
pataus em Atenas; sim, Atenas também os possuiu, e esse precedente é uma
desculpa. Juro a V. Ex.ª que não acreditei; por mais fiel que fosse o
testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse ali, em
minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades
redivivo. Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do
que o efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo,
através da luneta de Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os,
e... - Que me queres? perguntou ele. Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as
carnes. O vulto falava e falava grego, o mais puro ático. Era ele, não
havia duvidar que era ele mesmo, um morto de vinte séculos, restituído à
vida, tão cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa
cauda do cão. Era claro que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande
passo na carreira do espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e
deixei-me ficar assombrado. Ele repetiu a pergunta, olhou em volta de si
e sentou-se numa poltrona. Como eu estivesse frio e trêmulo (ainda o
estou agora) ele que o percebeu, falou-me com muito carinho, e tratou de
rir e gracejar para o fim de devolver-me o sossego e a confiança. Hábil
como outrora! Que mais direi a V. Ex.ª? No fim de poucos minutos
conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e natural, eu
pedindo a todos os santos do céu a presença de um criado, de uma visita,
de uma patrulha, ou, se tanto fosse necessário, - de um incêndio.
Escusado é dizer a V. Ex.ª que abri mão da idéia de o consultar acerca
do vestuário moderno; pedira um espectro, não um homem "de verdade",
como dizem as crianças. Limitei-me a responder ao que ele queria;
pediu-me notícias de Atenas, dei-lhas; disse-lhe que ela era enfim a
cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação muçulmana, a
independência, Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos
pendurados da minha boca; e, mostrando-me admirado de que os mortos lhe
não houvessem contado nada, explicou-me que à porta do outro mundo
afrouxavam muito os interesses deste. Não vira Botzaris nem lord Byron, -
em primeiro lugar, porque é tanta e tantíssima a multidão de espíritos,
que estes se fazem naturalmente desencontrados; em segundo lugar,
porque eles lá congregam-se, não por nacionalidades ou outra ordem,
senão por categorias de índole, costume e profissão: assim é que ele,
Alcibíades, anda no grupo dos políticos elegantes e namorados, com o
duque de Buckingham, o Garrett, o nosso Maciel Monteiro, etc. Em seguida
pediu-me notícias atuais; relatei-lhe o que sabia, em resumo; falei-lhe
do parlamento helênico e do método alternativo com que Bulgaris e
Comondouros, estadistas seus patrícios, imitam Disraeli e Gladstone,
revezando-se no poder, e, assim como estes, a golpes de discurso. Ele,
que foi um magnífico orador, interrompeu-me: - Bravo, atenienses! Se
entro nestas minúcias é para o fim de nada omitir do que possa dar a V.
Ex.ª o conhecimento exato do extraordinário caso que lhe vou narrando.
Já disse que Alcibíades escutava-me com avidez; acrescentarei que era
esperto e arguto; entendia as coisas sem largo dispêndio de palavras.
Era também sarcástico; ao menos assim me pareceu em um ou dois pontos da
nossa conversação; mas no geral dela, mostrava-se simples, atento,
correto, sensível e digno. E gamenho, note V. Ex.ª, tão gamenho como
outrora; olhava de soslaio para o espelho, como fazem as nossas e outras
damas deste século, mirava os borzeguins, compunha o manto, não saía de
certas atitudes esculturais. - Vá, continua, dizia-me ele, quando eu
parava de lhe dar notícias. Mas eu não podia mais. Entrado no
inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não atinava por que
razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com
ele à eternidade. Esta idéia gelou-me. Para um homem que acabou de
digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos
sarcasmos. Se pudesse fugir... Animei-me: disse-lhe que ia a um baile. -
Um baile? Que coisa é um baile? Expliquei-lho. - Ah! ver dançar a
pírrica! - Não, emendei eu, a pírrica já lá vai. Cada século, meu caro
Alcibíades, muda de danças como muda de idéias. Nós já não dançamos as
mesmas coisas do século passado; provavelmente o século XX não dançará
as deste. A pírrica foi-se, com os homens de Plutarco e os numes de
Hesíodo. - Com os numes? Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabara,
que as academias do século passado ainda lhe deram abrigo, mas sem
convicção, nem alma, que as mesmas bebedeiras arcádicas, Evoé! padre
Bassareu! Evoé! etc. honesto passatempo de alguns desembargadores
pacatos, essas mesmas estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em
longe, acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro prosador alude aos
restos da teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a
ciência reduziu todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo morto. -
Morto Zeus? - Morto. - Dionisos, Afrodita?... - Tudo morto. O homem de
Plutarco levantou-se, andou um pouco, contendo a indignação, como se
dissesse consigo, imitando o outro: - Ah! se lá estou com os meus
atenienses! - Zeus, Dionisos, Afrodita... murmurava de quando em quando.
Lembrou-me então que ele fora uma vez acusado de desacato aos deuses e
perguntei a mim mesmo donde vinha aquela indignação póstuma, e
naturalmente postiça. Esquecia-me, - um devoto do grego! - esquecia-me
que ele era também um refinado hipócrita, um ilustre dissimulado. E
quase não tive tempo de fazer esse reparo, porque Alcibíades, detendo-se
repentinamente, declarou-me que iria ao baile comigo. - Ao baile?
repeti atônito. - Ao baile, vamos ao baile. Fiquei aterrado, disse-lhe
que não, que não era possível, que não o admitiriam, com aquele trajo;
pareceria doido; salvo se ele queria ir lá representar alguma comédia de
Aristófanes, acrescentei rindo, para disfarçar o medo. O que eu queria
era deixá-lo, entregar-lhe a casa, e uma vez na rua, não iria ao
Cassino, iria ter com V. Ex.ª. Mas o diabo do homem não se movia;
escutava-me com os olhos no chão, pensativo, deliberante. Calei-me;
cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia desfazer-se, e
que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o meu século.
- Quero ir ao baile, repetiu ele. Já agora não vou sem comparar as
danças. - Meu caro Alcibíades, não acho prudente um tal desejo. Eu teria
certamente a maior honra, um grande desvanecimento em fazer entrar no
Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos atenienses; mas os outros
homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossível. - Por
quê? - Já disse; imaginarão que és um doido ou um comediante, porque
essa roupa... - Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do século. Não
tens alguma roupa que me emprestes? Ia a dizer que não; mas ocorreu-me
logo que o mais urgente era sair, e que uma vez na rua, sobravam-me
recursos para escapar-lhe, e então disse-lhe que sim. - Pois bem, tornou
ele levantando-se, irei à maneira do século. Só peço que te vistas
primeiro, para eu aprender e imitar-te depois. Levantei-me também, e
pedi-lhe que me acompanhasse. Não se moveu logo; estava assombrado. Vi
que só então reparara nas minhas calças brancas; olhava para elas com os
olhos arregalados, a boca aberta; enfim, perguntou por que motivo
trazia aqueles canudos de pano. Respondi que por maior comodidade;
acrescentei que o nosso século, mais recatado e útil do que artista,
determinara trajar de um modo compatível com o seu decoro e gravidade.
Demais nem todos seriam Alcibíades. Creio que o lisonjeei com isto; ele
sorriu e deu de ombros. - Enfim! Seguimos para o meu quarto de vestir, e
comecei a mudar de roupa, às pressas. Alcibíades sentou-se molemente
num divã, não sem elogiá-lo, não sem elogiar o espelho, a palhinha, os
quadros. - Eu vestia-me, como digo, às pressas, ansioso por sair à rua,
por meter-me no primeiro tílburi que passasse... - Canudos pretos!
exclamou ele. Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e
riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de escárnio, o que
ofendeu grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque, note V.
Ex.ª ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de
execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas
barbas. Não respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e
continuei a abotoar os suspensórios. Ele perguntou-me então por que
motivo usava uma cor tão feia... - Feia, mas séria, disse-lhe. Olha,
entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de
verniz, embora preto, e trabalhado com muita perfeição. E vendo que ele
abanava a cabeça: - Meu caro, disse-lhe, tu podes certamente exigir que o
Júpiter Olímpico seja o emblema eterno da majestade: é o domínio da
arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens
que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que parece
absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e belo, - belo à nossa
maneira, que não andamos a ouvir na rua os rapsodos recitando os seus
versos, nem os oradores os seus discursos, nem os filósofos as suas
filosofias. Tu mesmo, se te acostumares a ver-nos, acabarás por gostar
de nós, porque... - Desgraçado! bradou ele atirando-se a mim. Antes de
entender a causa do grito e do gesto, fiquei sem pinga de sangue. A
causa era uma ilusão. Como eu passasse a gravata à volta do pescoço e
tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me, segundo
confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, em suores
frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata
e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas
pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em
restituir-ma. Atei-a enfim, depois vesti o colete. - Por Afrodita!
exclamou ele. És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na morte.
Estás todo cor da noite - uma noite com três estrelas apenas -
continuou apontando para os botões do peito. O mundo deve andar
imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor tão morta e tão
triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos... Não pôde concluir a frase;
eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi
indescritível. Caíram-lhe os braços, ficou sufocado, não podia articular
nada, tinha os olhos cravados em mim, grandes, abertos. Creia V. Ex.ª
que fiquei com medo, e tratei de apressar ainda mais a saída. - Estás
completo? perguntou-me ele. - Não: falta o chapéu. - Oh! venha alguma
coisa que possa corrigir o resto! tornou Alcibíades com voz suplicante.
Venha, venha. Assim pois, toda a elegância que vos legamos está reduzida
a um par de canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia
isto levantando-me as abas da casaca), e tudo dessa cor enfadonha e
negativa? Não, não posso crê-lo! Venha alguma coisa que corrija isso. O
que é que, falta, dizes tu? - O chapéu. - Põe o que te falta, meu caro,
põe o que te falta. Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e
pu-lo na cabeça. Alcibíades olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri ao
ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com dor o digo) era tarde;
estava morto, morto pela segunda vez. Rogo a V. Ex.ª se digne de expedir
suas respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao
necrotério, e se proceda ao corpo de delito, relevando-me de não ir
pessoalmente à casa de V. Ex.ª agora mesmo (dez da noite) em atenção ao
profundo abalo por que acabo de passar, o que aliás farei amanhã de
manhã, antes das oito.