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Postado por
Marlon
às
16:49
Mário de Andrade, no conto
"Tempo da Camisolinha ", da obra Contos Novos, assume um foco narrativo
em primeira pessoa, com narrador participante, que, simultaneamente, é o
protagonista da narrativa. A narrativa, por sua vez, é posterior aos
fatos: o narrador adulto conta sua experiência infantil. Apesar de os
fatos estarem distantes no tempo, estão próximos emocionalmente. Para
contá-los, o narrador envolve-se tanto, que assume a linguagem da
criança e expressa suas emoções e interrupções por meio de sinais de
pontuação subjetivos, como reticências e exclamações: "(...) davam nela,
machucavam muito ela, isto é ... muito eu não queria não, só um
bocadinho, que machucassem um pouco, sem estragar a cara tão linda da
pintura, só pra minha madrinha saber que agora que eu tinha a boa sorte,
estava protegido e nem precisava mais dela, tó! ai que saudades das
minhas estrelas-do-mar! (...)" "(...) eu bem não queria pensar, mas
pensava sem querer, deslumbrado, mas a boa mesmo era a grandona
perfeita, que havia de dar mais boa sorte pra aquele malvado de operário
que viera, cachorro! dizer que estava com má sorte! Agora eu tinha que
dar pra ele a minha grande, a minha sublime estrelona-do-mar!..." A
apresentação do conflito não é a tradicional, já que, inicialmente, o
narrador não parece ter a preocupação de situar o leitor no tempo e no
espaço; não se preocupa em conduzir o texto para que o leitor o assimile
de forma segura. "A feiúra dos cabelos cortados me fez mal.": tal
colocação não conduz o leitor ao assunto diretamente. Posteriormente,
saberemos que os "cabelos cortados" foram os dele. O narrador parte de
suas próprias experiências; o corte dos cabelos trouxe-lhe uma "noção
prematura de sordidez dos nossos atos" ou "da vida". A criança não
queria seus cabelos cortados; isso lhe trouxe sofrimento, mas a
justificativa recebida foi que deveria ficar homem. Isso, em vez de
animá-lo, apavorava-o, pois uma criança de três anos não queria ser
homem; queria ser apenas criança. É o iníicio, assim, de uma das
abordagens contidas no texto: o pré-estabelecido, o convencional, as regras
fundamentais, que devem ser sempre seguidas por alguém que deseja fazer,
coerentemente, parte da estrutura social.
É "sórdido", como nos coloca o narrador, um menino ter cabelos "dum
negro quente, acastanhados nos reflexos", principalmente se "caíam pelos
ombros em cachos gordos, com ritmos pesados de molas de espiral". A
reflexão que nos fica é se o que é sórdido é a imposição, ou a
delicadeza dos cachos... Tal fato se torna tão marcante, que, já homem,
os cachos tornaram-se a lembrança de um "engano grave", que o fizeram
destruir o quadro que ainda continha essa lembrança. No corte dos
cabelos, não são apenas eles que são destruídos, mas o "olhar manso, um
rosto sem marcas, franco, promessa de alma sem maldade". O que fica é o
homem que acha "besta" a camisolinha conservada pela mãe para que
economizasse. O adulto, que agora é, tenta-se justificar pelo que ele
foi ("Guardo esta fotografia porque si ela não me perdoa do que tenho
sido ao menos explica"). A criança, forçada a virar homem aos três anos,
passa a ter um "quê repulsivo de anão". É nítida a comparação que faz
entre ele e o irmão, Totó. O irmão mantém o ar sem malícia e infantil;
parece não ter sofrido a repressão vivida pela personagem protagonista.
Ao caracterizá-lo como "criança integral", reforça as perdas sofridas
pelo narrador; nesse momento, a idéia dos cachos retorna à mente do
leitor: o problema reforça-se como moral, não como físico; com os
cabelos, perdeu-se a pureza. O personagem narrador - a "montruosidade
insubordinada", revelada pelos "olhos que espreitam" - contrapõe-se ao
irmão, "a própria imagem da infância". Num momento de "flash-back", o
narrador reflete sobre o valor dos signos do passado ("não sei por que
não destruí em tempo também essa fotografia"): é a forma de buscar-se e
encontrar-se nas reminiscências. É como se fosse capaz de perceber que a
foto era a comprovação da repressão e seus resultados: o que fazer
diante disso? ... a sensação da incapacidade de reagir... Quando
o leitor entra em contato com tudo isso, sente que os cachos cortados
são ponto de partida do enredo. O fluxo de consciência vai tomando maior
espaço à medida que incomoda o narrador. "Voltemos ao caso que é
melhor": prefere interromper as reflexões a deparar-se, possivelmente,
com o que não quer ver... Nessa repressão tão sofrida, o pai é elemento
desencadeador de todo o processo: "meu pai suavemente murmurou uma
daquelas suas decisões irrevogáveis". A antítese marca a introdução do
pai no enredo - suave e irrevogável; nesse caso, a suavidade não se liga
à delicadeza, mas ao fato de não haver discussão nas decisões por ele
tomadas. A maior revolta do menino é não ter nenhuma participação nisso:
"Deixassem que eu sentisse por mim, me incutissem aos poucos a
necessidade de cortar os cabelos, nada: uma decisão à antiga, brutal,
impiedosa, castigo sem culpa, primeiro convite às revoltas íntimas
(...)". A reação do narrador é de "monstruosidade insubordinada",
voltando-se contra o cabeleireiro; a dificuldade de lembrar é grande, já
que a resistência a tudo isso se mantém até hoje ("Tudo o mais são
memórias confusas ritmadas por gritos horríveis (...)"). A seleção de
vocabulário é pesada porque a dor também é: "cadáveres de meus cabelos",
"um não-conformismo navalhante"... e a reação do menino é de pranto.
Nota-se que o que dói mais é a troca proposta pelos adultos: presentes,
gozações, espelhos. Ninguém tenta entender a dor do garoto. Na relação
indivíduo/mundo, a reação do indivíduo é a revolta: nasce o homem - como
queriam os "outros" - mas é alguém "cheio de desilusões, de revoltas,
fácil para todas as ruindades", com lembranças infantis desagradáveis,
cujo único elemento restante foram "as camisolinhas", tão detestáveis
quanto todo o resto. A figura paterna não afeta apenas o menino, mas
também a mãe: depois de um parto desastroso, movia-se "premiada pelas
obrigações da casa e dos filhos". A idéia de "obrigação" intensifica-se
ao longo das ações dela ("menos tratava da casa que se iludia, consolada
por cumprir a obrigação de tratar da casa."). A atitude do pai diante
do sofrimento materno é exposta de forma irônica: "Diante da iminência
de um desastre maior, papai fizera um esforço espantoso, o seu ser que
só imaginava a existência no trabalho sem recreio, todo assombrado com
os progressos financeiros que fazia e a subida de classe." Observa-se o
antagonismo de interesses entre esses elementos do mesmo ciclo familiar:
a criança, preocupada apenas com a própria dor (tal egocentrismo
reflete-se, inclusive, nas reminiscências do narrador, que não consegue
lembrar-se, exatamente, do que ocorria com sua mãe - "(...) não sei
direito..." -; a mãe, preocupada com suas obrigações para com a família;
o pai, preocupado com os "progressos financeiros e a subida de classe".
O que vemos, portanto, é a família conservadora burguesa. Para melhorar
o estado de saúde de sua mãe, vão para a praia. A mudança de espaço não
mudará esse quadro familiar. Observa-se isso, por exemplo, no quadro de
Nossa Senhora do Carmo (trazido da cidade para a praia), utilizado para
ameaçar e amedrontar o menino ("Meu filho, não mostra isso, que feio!
repare: sua madrinha está te olhando na parede!"). Diante disso, o
menino não se submete, pois desafia a "madrinha santa", quando a mãe não
está olhando ("Tó! que eu dizia, olhe! Olhe bem! Tó! olhe bastante
mesmo!"). Nessa mudança de espaço, as poucas mudanças de atitudes são
apenas aparentes: a mãe "sentia um prazer perdoável de representar
naquelas férias o papel largado de convalescente"; o pai "deixara menos
pai, um ótimo camarada com muita fome e condescendência". O que se nota é
que pai e mãe precisam de motivos, "desculpas", para se comportarem de
modo diferente, enquanto que o filho mantém sua personalidade rebelde,
avessa ao formal. Os operários trabalhadores do canal reforçam a
hierarquia que a criança já observava na família, já que tratavam melhor
a ele, "filhinho de ‘seu dotô’, do que aos próprios filhos": como diz o
próprio narrador, agiam "proletariamente"... Tudo isso se segue de um
fato novo que modifica o ritmo do enredo: o garoto é presenteado com
três estrelas-do-mar por um operário, que lhe diz que as mesmas dão boa
sorte. A posse das estrelas-do-mar tornou-se algo fundamental para a
criança: constituíam-se num segredo. Não sendo necessário dividi-las ou
partilhá-las com alguém, tornam-se algo só seu, capaz de dar a boa sorte
prometida e protegê-lo de qualquer infortúnio: "Comer? pra que comer?
elas me davam tudo, me alimentavam, me davam licença para brincar no
barro, e si Nossa Senhora, minha madrinha, quisesse se vingar daquilo
que eu fizera pra ela, as estrelas me salvavam, davam nela (...)" Porém,
a posse das estrelas é momentânea; a felicidade é momentânea. Ao ver,
na praia, um operário triste, queixando-se da sua má sorte, a criança
sente-se na obrigação de ceder-lhe sua estrela-do-mar (de início, a
pequena, mas, depois, sabia que devia ceder a maior: "(...) aquele homem
com tantos filhinhos pequenos e aquela mulher paralítica na cama!... e
no entanto eu era feliz, feliz e com três estrelinhas-do-mar pra me
darem sorte..."). Se, no início do conto, o embate da criança era com o
mundo, agora, é consigo mesma, quando descobre que até dentro de si as
coisas não são harmoniosas: ao mesmo tempo que deseja as estrelas, que
quer as três - que, para ele, representam a suprema felicidade -,
incomoda-se com o sofrimento do operário. Dolorosamente, acaba deixando
sua vontade de lado e entrega-lhe a estrela: "Tome! Eu soluçava gritado,
tome a minha... tome a minha estrela-do-mar! dá... dá, sim, boa
sorte!...". Tal atitude não deixa - ao contrário do que se poderia
esperar de uma narrativa moralista tradicional - o garoto satisfeito
consigo mesmo, já que foi tão altruísta. O que ocorre, na verdade, é um
imenso sofrimento, arrependimento ("eu sofria arrependido"), que ele não
consegue conter: "Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama, abafando
os soluços no travesseiro sozinho.". À sua maneira, a narrativa
torna-se cíclica: o sofrimento vivido com a perda dos cachos castanhos
retorna na perda da estrela-do-mar... é o homem que se forma através de
perdas sucessivas, de sofrimentos contínuos, "no infinito dos
sofrimentos humanos".