"Nunca pude esquecer sua morte. Eu o
vi, mas na hora não entendi tudo. Eu só vi o sangue. Tinha sangue por
toda parte. O lençol estava vermelho. Tinha uma poça no chão. Tinha
sangue até na parede. Nunca tinha visto tanto sangue. Nunca pensara que,
uma pessoa se cortando, pudesse sair tanto sangue assim. Ele estava na
cama e tinha uma faca enterrada no peito. Seu rosto eu não vi. Depois
soube que ele tinha cortado os pulsos e aí cortado o pescoço e então
enterrado a faca. Não sei como deu tempo de ele fazer isso tudo, mas o
fato é que ele fez. Tudo isso. Como, eu não sei. Nem por quê."
Um Mundo Despoetizado
Os Contos de Tarde da Noite, de Luiz
Vilela, em geral são breves, centrados em uns poucos personagens e uma
única ação, e chegam a criar um início de expectativa sobre o
desenvolvimento; aí, parecem estagnar-se em direção ao final, que nunca é
algo muito inesperado. Ao contrário, os finais geralmente são o que se
espera que aconteça, como a afirmar que a ruindade do mundo não comporta
muitas surpresas; nada de muito diferente deve acontecer para quebrar a
miséria dominante. Os personagens são meninos, meninas, jovens casais e
casais não tão jovens e velhos, que transitam num mundo de
perversidade, incompreensão, tédio, ostentação, dominação, medo,
incerteza. A linguagem é coloquial, bastante direta, despojada, sem
muitas surpresas também, com poucas imagens, a maioria comuns ou
desgastadas. Pouca poesia para falar de um mundo despoetizado.
Impressões Infantis
O ponto de vista da criança predomina
nos contos, como uma voz que tenta se opor ao sistema de opressão do
grupo social, mas raramente consegue. Em "Lembrança", conto que abre o
livro, o narrador volta a seu passado infantil e reencontra a figura do
avô. O velho parecia um ser tranqüilo, de pouca conversa, as pessoas nem
o notavam direito, em seu quartinho dos fundos. Sua vida passada,
entretanto, havia sido recheada de perdas, abandonos, mortes. O que as
pessoas viam como um velho distinto era um monte de amargura.
Suicidou-se cortando os pulsos e o pescoço, e enterrando a faca no
coração. Morte violenta para quem vivera na paz destroçada da perda. Sua
aparência de limpo na mente do menino, entretanto, não fora maculada.
Tanto sangue, para o menino, não era sujeira. Era diferente. Era o
símbolo da limpeza que o velho precisava fazer em sua vida, a
purificação que conduz à morte. A criança não consegue se manter imune
às misérias da sociedade, como as que destruíram o avô do primeiro conto
e as que se apresentam ao protagonista do conto "Aprendizado". Eduardo
tirou nota máxima na redação e correu a casa para exibir com orgulho o
texto ao pai e à mãe. Jordão e Grilo o abordam, dizendo que também
querem ler o texto, e usam de todos os subterfúgios para que ele ceda.
Ao ver sua redação rasgada pelos colegas invejosos, Eduardo tenta
agredi-los, mas a reação de seus "semelhantes" promete ser muito mais
violenta. O menino aparece como um ser humano frágil, inexperiente, que
tem de aprender a duras penas como sobreviver em um mundo repleto de
perversidade, que ofusca as pequenas vitórias pessoais. A arte de
escrever exige um longo aprendizado. Conhecer as fraquezas e as maldades
das pessoas também, desde a infância. Mais uma vez, o menino aparece
como um ser humano frágil, inexperiente, que tem de aprender a duras
penas como sobreviver em um mundo repleto de perversidade, que ofusca as
pequenas vitórias pessoais. A incompreensão dos atos dos adultos também
faz parte do sistema infantil. Em "Um peixe", o menino volta da
pescaria no domingo. Os peixes estão mortos no tanque, apenas a traíra
se mexe. Ela é separada dos demais, e "ressuscita" na pia com água
limpa. O menino vibra com a ressurreição e vai à padaria comprar pão
para sua nova cria, para a qual já havia feito planos para o futuro. Ao
chegar a casa, constata que a empregada havia assassinado seu mascote,
para fritar. O menino é o caçador de peixes por esporte, é o predador
dos animais, mas tem afinidade com eles. Se um deles escapa, manda o
código de honra infantil que ele seja preservado, por ter adquirido o
direito a uma vida mais longa através da bravura. O adulto intrometido
joga por terra a construção moral da criança. O mundo dos homens cansa.
No conto "Suzana", os dois meninos combinam como é que vai ser a
abordagem de Suzana, como é que eles vão fazer "aquilo" com ela. E se
ela não deixar hoje? O medo é o velho aparecer. Tudo verificado, os
meninos se aproximam e um deles se adianta: - Suzana - chamou, e a égua
apareceu. Ainda na linha da relação da criança com os animais, os
meninos aqui têm sua iniciação sexual proporcionada por um animal, um
elemento puro, não contaminado pelas mazelas sociais: - Doença? Essa é
boa; mais fácil a gente pear doença nela. Criança e animais produz outro
conto, "As Formigas". O conforto do mundo desconfortável é dado ao
menino ao conversar - e ser correspondido - com as formigas que fazem
fila na parede saindo do rachado. Seu mundo de formigas é muito melhor
do que o de homens: sem gritos, mentiras. E o perverso mundo dos homens é
que se encarrega de destruir sua fantasia confortante: o pai cimenta o
rachado por onde saíam as suas amigas. É o fim, a angústia, o bolo na
garganta. Há também o menino levado e desaforado, que aprende rápido a
se defender na selva social, em "Menino". Márcio é o protótipo do menino
teimoso, não lava as mãos, não almoça direito, faz birra com a mãe
dizendo que não vai à escola, manda o professor à merda, e fica de
castigo. Chegando tarde a casa, a mãe o repreende e ele diz que ficou de
castigo por ter respondido mal ao professor. Márcio pergunta à mãe se
era mau menino; a mãe fica enternecida com o filhinho levadinho e
responde que não. O menino correu e saltou na quina da banheira. -
Striknik! Striknik! A temática do conto é a relação entre mãe e filho;
ela briga todo o tempo com o menino, tenta conter seu espírito inquieto,
mas o ama, e engole apertado quando ele diz que se julga um mau menino.
A menina que tem medo aparece em "Os mortos que não morreram". Há aí
uma mistura de impressões infantis sobre uma rachadura no teto, que se
lhe afigura o rasto de um bicho, e diálogos de adultos. O tema das
conversas dos homens e mulheres é a ameaça que paira sobre os animais,
com efeitos piores sobre o animal homem, que é consciente disso e tem
seu maior fator de sofrimento na memória, onde habitam os mortos que não
morreram. Dois dos homens trocam ironias e sarcasmos, um deles tenta
seduzir a esposa de um terceiro, na cozinha. Em seu retorno, discute-se a
permissividade e a moral. Lá dentro, a menina chorava, assustada com o
bicho que riscou a parede. O ser humano, seja criança ou adulto, vive
num mundo de medo, incerteza, desavenças e seduções. O saber, ou a
aparência dele, é uma forma de poder, que provoca admiração ou inveja, e
prepotência daquele que julga possuí-lo. Os mortos que não morreram
são, portanto, todas as misérias que compõem a vida do homem, e sem as
quais ele não consegue sobreviver. A falsa autoridade das instituições
dos adultos também contamina as crianças. "Com seus próprios olhos" tem
uma estrutura dialógica, em que o diretor da escola faz perguntas
incessantes ao menino Ivo, que havia presenciado na noite anterior uma
cena de sedução entre o distinto diretor e outro menino. O diretor conta
com a discrição de Ivo para que ninguém saiba do ocorrido, que seria um
escândalo. É a temática do abuso de poder, da falsa aparência de
probidade e respeitabilidade. As ações das pessoas desmentem o que sua
superfície aparenta, e de repente toda a consideração que o mundo social
tem pela nobreza do cargo de diretor fica na dependência de um menino
frágil e humilde. Outra forma de abuso de autoridade que a criança ou o
jovem não quer aceitar aparece em "O professor de inglês". O professor
corresponde à tradicional caricatura do mestre autoritário, com cara de
rato, cabelos ralos na cabeça. O professor pune com notas baixas, ameaça
com reprovação, humilha os alunos, responde mal a todos. Os alunos não
têm nome; apenas números. O aluno novato indigna-se com a postura do
professor, e pergunta a um colega por que é que eles não reclamam dele.
Para a escola, o professor sabe o conteúdo e dá aulas, portanto não há
motivo para tirá-lo. O aluno novato, mais sensível, afirma que esse
sistema é horrível, e, diante da afirmação do colega de que um dia ele
iria é achar graça da situação, ele se torna grave e declara: - Nunca
vou achar graça disso, nem vou esquecer. Nunca vou esquecer disso. A
temática do conto é o autoritarismo do sistema escolar, representado
pelo professor de inglês. O sistema é fechado, de absoluta dominação, e
as pessoas normais devem-se sujeitar a ela, para, talvez, até acharem
graça posteriormente. A exceção é o personagem Carlos, que não pensa
como os outros.
Expectativas Nulas
A visão do adolescente, ou do jovem
adulto, também transmite perplexidade, ou desesperança, ou amargo
conformismo. O título de "A pátria precisa de você" ironiza o apelo
patriótico do cartaz que leva os adolescentes a imaginarem que serão
bem-vindos ao exército (que se auto-intitula "pátria"), já que eles
constituem o elemento necessário lá. Entretanto, o grupo de jovens que
se apresenta "para servir a pátria" sofre maus tratos e ofensas dos
representantes da lei. O autoritarismo e a prepotência do militares no
pequeno tempo de convivência do adolescente narrador naquele lugar dão a
ele uma grande sensação de liberdade quando terminam aqueles momentos
de opressão e ele afinal pode seguir para casa. O adolescente tem suas
carências, que precisam ser refreadas. "Uma namorada" era tudo de que o
narrador não precisava, até que seu chefe, o doutor, lembrou-lhe de que
isso existia no Dia dos Namorados. Foi aí que as noites se tornaram um
problema. Até então suas noites, após um dia de trabalho dedicado e
comprometido, se resumiam às idas ao cinema e um copo de leite. O
próprio cinema começa então a despertá-lo para a existência de namorados
e namoradas. Sua primeira tentativa de namorar revela-se, entretanto,
tão desastrada, que ele tenta o suicídio. É salvo pela perícia do
motorista do ônibus. Com persistência, consegue "curar-se" do desejo de
ter uma namorada e sua vida volta a ser como antes. A temática desse
conto é a da adolescência morta pela mecanização do trabalho e a
solidão. Se se exige do homem esse tipo de vida, ele tem que
corresponder a ela, e "curar-se" de qualquer desvio do que se espera
dele como pessoa: funcionário exemplar e pessoa "normal". Pobreza e
solidão, dois fortes motivos para depressão, que não pode ser evitada
nem pela juventude dos vinte anos. A vida é triste, amarga, só resta
entregar-se à dor. "Num Sábado" contém uma temática análoga. O rapaz
pobre que trabalha duro a semana inteira sai pela manhã de sábado, toma
uns chopes, volta para casa à tarde, dorme para esquecer a tarde,
acorda, come pão e veste um terno. Termina por não sair, e fica pensando
em si mesmo, em sua pobreza e solidão, e tem vontade de morrer. Pobreza
e solidão, dois fortes motivos para depressão, que não pode ser evitada
nem pela juventude dos vinte anos. A vida é triste, amarga, só resta
entregar-se à dor. Outro suicídio não perpetrado aparece em "O Suicida".
Alguém anunciou numa rádio que iria pular do alto de determinado prédio
às dezessete horas. Nesse contexto desenvolve-se a narrativa. O
infortúnio de uma hipotética pessoa que se atira do alto de um poço
profundo transforma-se em espetáculo para os devoradores de emoções
fortes. Tenta-se descobrir a causa da tentativa de suicídio, discutem-se
outros casos de suicídio. Um pedreiro que trabalhava no alto põe uma
perna para fora da janela e é vaiado, torcem para que ele caia. Ao
final, o anunciado suicida nem aparece, e todos acabam se retirando
tristes e decepcionados, exceto um dos estudantes, que ganhara a aposta
de que não haveria suicídio. Para os espectadores, o espetáculo da morte
alimenta a vida, produz emoções, salvar uma vida é perder um espetáculo
que faz correr adrenalina. É a perversidade do ser humano, que precisa
da desgraça alheia para alimentar uns instantes de vida fora da rotina.
Amor Cansado
A temática amorosa confirma a
negatividade geral, como em "Amor": fim de tarde, cansaço, proximidade
de fim de namoro. Ele não consegue prestar atenção nos sapatos que ela
admira na vitrine. Ela se impacienta com o alheamento dele, diz que ele
está ríspido, nervoso, uma pilha, e que não tem mais amor a ela. Após um
grande silêncio, ela propõe terminar, ele não acha que é o caso, ela
entra no ônibus, ele pergunta se é para telefonar, ela deixa por conta
dele. O amor se apresenta como aquela rotina cansativa da cidade;
precisa-se dele, mas ele não dá completa satisfação. E as pessoas
continuam a chamar isso de amor: Ele ficou vendo o ônibus se distanciar
pela avenida, o rosto abatido, pensando por que o amor era tão difícil.
"Ousadia" é o que o marido tentou para quebrar o cansaço da relação, mas
não conseguiu ir adiante. Marido e mulher deitados para dormir, ela
quase dormindo, ele tentando conversar com ela cheio de evasivas,
buscando concretizar uma proposta de alguma coisa ousada, provavelmente
de natureza sexual, em suas vidas. Uma troca de casais, talvez? Ménage a
trois? O máximo que ela consegue entender é que ele queria fazer amor,
mas o dispensa, dizendo-se muito cansada. Não há bons sentimentos que
resistam a um amor cansado, ou a um amor igual a todos os amores com
todas as pessoas, em todos os casos sem esperanças. É a infalibilidade
da banda podre. A rotina da vida de casado chega a momentos em que a
pessoa quer tentar qualquer coisa para afastar a monotonia. As leis
sociais são, entretanto, muito rígidas, e amarram as pessoas aos "bons
costumes". Qualquer ousadia maior, qualquer ruptura com o sistema tem
que ser muito bem considerado, pelo risco de execração social. Muitas
vezes, é melhor deixar a ousadia permanecer no plano ideal do que
concretizá-la. É mais cômodo e distinto. Tanto no fim da tarde, quanto à
noite, ou "Ao Nascer do Dia", não há bons sentimentos que resistam a um
amor cansado, ou a um amor igual a todos os amores com todas as
pessoas, em todos os casos sem esperanças. É a infalibilidade da banda
podre. E as pessoas têm de se conformar de que tudo seja assim. Não há a
quem recorrer. O conto "Tarde da noite" repete o tema do casamento
cansado numa situação insólita. O casal está na cama, e uma desconhecida
telefona. Alguém querendo conversar discou um número a esmo, chega a
falar em suicídio, e a conversa se prolonga. O marido cansado de ser
casado se sente seduzido por aquela voz, e transforma o telefonema numa
emocionante aventura extra-conjugal. Depois de um longo diálogo, a moça
finalmente desliga, e o marido cansado continua sonhando com a
possibilidade da aventura. Em "Esse Amor Besta de Inicial Maiúscula", há
uma tentativa de amar diferente. Marcos, de namorada recente,
encontra-se com um amigo de velhos tempos. Os dois têm uma concepção bem
diferente de amor. O amigo considera-se mais realista, mais maduro. As
mulheres são avançadas em assuntos sexuais, desacreditam o amor besta de
inicial maiúscula, o que importa é o império do corpo, os sentidos.
Mulher é sexo, carne, desejo, amor animal. O outro pensamento,
representado por Marcos, é considerado pelo amigo como romântico no mau
sentido, doença mental, coisa anacrônica e ingênua. Ao final um ônibus
que ia passando esmaga uma coisa que Marcos trazia dentro de um
embrulhinho: uma flor que ele ia levando para a namorada. O amigo de
Marcos é o que tem voz mais atuante, é o mais articulado, o mais
expansivo, é o que representa os que se impõem pela pose, os que se
passam por conhecedores perfeitos do mundo, o mundo dos espertos, dos
que sabem viver a vida. Marcos participa de um mundo mais humilde, que
acredita no amor, mas que tem que conviver com o outro mundo e
tolerá-lo.
A Paz Destroçada
A velhice é retomada em "Os
sobreviventes". Neste conto predomina o diálogo entre dois homens em
torno de cinqüenta anos, a fala dos dois é que conduz o desenrolar dos
acontecimentos. Encontrando-se depois de mais de vinte anos num bar que
freqüentavam quando jovens, vão tentando lembrar-se dos personagens que
povoaram o tempo de sua juventude, mais precisamente o espaço daquele
bar. Afonso é o mais melancólico, o mais saudoso dos bons tempos, e
também o mais pessimista, o que lhe vale uma repreensão de Brandão.
Afonso reclama que seu fígado já não lhe permite beber como na mocidade,
e declara sua imensa e velha amizade ao colega, que retribui. Brandão
destila sua amargura contra a juventude - barulhentos, afeminados -;
Afonso agora é quem contemporiza. Num determinado momento, Brandão
resolve alterar com uns rapazes que ele supunha estarem rindo dele na
mesa ao lado. A provocação resulta numa briga dele com um dos moços, que
lhe esmurra a cara. Embriagado, humilhado e com o nariz escorrendo,
Brandão sai amparado pelo amigo Afonso. O conto aborda a temática do
envelhecer, que impede as pessoas de quererem fazer o que faziam na
juventude. Em confronto com aquela mesma juventude que lhes pertencera
outrora, os mais velhos se tornam impotentes e se retiram, mesmo contra a
vontade. Enfoque semelhante da velhice ocorre em "Bárbaro". Dois jovens
em um quarto, um tenta ler e o outro quer por força contar a festa a
que ele tinha ido. Numa linguagem cheia de gírias, palavrões e
lugares-comuns, conta como ele e seus amigos se vingaram de um velho de
cinqüenta e cinco anos que os havia convidado a uma festa "quadrada". A
vingança foi arquitetada e perpetrada pelo Luquinha, que ridicularizou o
homem, embebedou-o e quase fez com que ele se despisse diante de todos,
à guisa de strip tease. Luquinha e os amigos representam a juventude
entediada que não respeita os velhos, julgando-se superiores a eles.
Aquilo para eles não fora nada de mais, uma brincadeirinha inocente,
pois eles nem enrabaram o velho ou qualquer troço assim. o interlocutor
do sujeito que conta o caso tenta voltar a concentrar-se em seu livro, e
é considerado estranho pelo amigo Nem todos os jovens, entretanto,
desprezam a velhice. Em "Luz sob a porta", Nelson está numa festa de
jovens da classe média pseudo-intelectualizada, que discute Kafka, faz
que lê Sartre e ouve os Beatles. Nelson precisa deixar a festa para
visitar a mãe, que aniversaria. Por isso é motivo de chacotas dos amigos
e amigas. Embora pressionado, ele insiste e vai, por volta de meia
noite. Havia luz sob a porta, ela estava esperando-o. Na casa da mãe,
fica sabendo que ela não recebeu nenhuma visita naquele dia. Dulce não
foi, nem Rubens, nem Álvaro, nem ninguém. A mãe se emociona, e chora
baixinho, de medo da velhice, da solidão. O conto é mais um pequeno
drama da miséria humana. Como várias outras dessas pequenas narrativas,
este não tem propriamente um final, mas algo como uma interrupção, ou
suspensão. Não há nenhum suspiro de alívio nem grande emoção com o
desfecho, apenas a triste constatação de que a velhice é assim mesmo.
Mas agora não chore mais. "Preocupações de uma velhinha": ela tem medo
da guerra, não entende bem o porquê de povos se matarem, e faz várias
perguntas ao filho, embora saiba que os mais novos não gostam de ficar
explicando coisas para gente velha; ela, entretanto, não resiste às
perguntas. Cidinho, o netinho maior, ameaça puxar o gatilho da arma que
fará a avó desaparecer, e ela roga que ele não o faça. Ele puxa o
gatilho e nada acontece. O susto é grande, a velhinha começa a chorar. O
tema da velhice aparece novamente cercado de conotações negativas. A
velha é quem não compreende o mundo, não é compreendida pelas pessoas,
possui uma ingenuidade indesejável, pior do que as crianças, mas cuja
pureza não é admirada por ninguém. Até a criança, o neto Cidinho,
portador de uma certa perversidade, é mais esperto que ela; era boba
mesmo, era boba.
Outras Frustrações
Há alguns outros contos que abordam
outros assuntos, que terminam sempre por convergir para o mesmo ponto de
vista da frustração, da insatisfação, da despoetização. Em "Subir na
vida", Vicente é professor, e o amigo Domício quer convencê-lo a largar a
miséria do magistério e ser seu sócio em um empreendimento. Vicente
resiste, embora, segundo Domício, a própria esposa do primeiro já
houvesse reclamado. O professor é descrito como uma pessoa abnegada, de
bom coração, corajoso. Domício, entretanto, acha - e diz ao amigo - que
abnegação em excesso vira imbecilidade. Domício havia ido à casa de
Vicente aquela tarde, e tinha estado com a esposa dele, a quem achou com
cara de preocupada com a situação do marido. Após toda aquela pressão
para que ele abandonasse a carreira de professor primário, ele vai à
escola e, ao voltar a casa, declara à esposa que resolveu aceitar a
oferta de parceria do amigo, e que ia pedir demissão da escola. Em
seguida, vai ao bar telefonar para o amigo comunicando a decisão. Depois
do telefonema, ele pede uma pinga, ele que nunca havia bebido. As
poucas esperanças que a vida proporciona estão nas remotas
possibilidades de transgressão, como a loucura, a poesia, o amor
sincero, a pureza, a fantasia. Essas transgressões, entretanto, são
tentativas efêmeras e impotentes diante da máquina de perversidade que
movimenta as relações entre as pessoas. A abnegação e a paixão pelo
ensino são vistos aqui como fraqueza; ajudar os outros, no entender da
classe média emergente, não faz ninguém feliz. Se deixar o magistério é
subir na vida, o personagem pretende deixá-lo, para dedicar-se a algo de
novo. Fica também a sugestão de que embriagar-se é tão algo de novo
como ingressar no consumismo; são fraquezas equivalentes. A loucura
poética de "Françoise" é um momento de reação à sociedade: um observador
sentado num banco de rodoviária vê uma loura bonitinha, ele jura que
ela está esperando alguém. Ela acaba sentando-se no banco e puxa
conversa com ele, diz que tem vontade de ir a Lindóia, por causa de uma
música que ouvia quando criança, e gosta de ficar na rodoviária vendo as
pessoas irem e virem, desculpa-se por estar incomodando. Ela lhe pede
uma fumadinha, diz que os olhos dele são belos, depois fica falando
sobre o sexo das frutas. O irmão da moça órfã é um poeta, o tio dono de
bar reprova. ela fala sobre palavras bonitas e palavras feias. Palavras
são como gente, tem de todo jeito: bonitas, feias gordas, magras,
simpáticas, antipáticas, sérias, alegres, engraçadas, alegres, tristes;
todo jeito. Ela compara os poetas a loucos, se diz uma solitária, uma
esquisita. Logo tem um ataque de choro e volta repentinamente ao
"normal". O tio aparece e interpela o observador. Ele não quer que a
sobrinha converse com estranhos, principalmente porque ela é mentalmente
perturbada, acha que o irmão que morreu está viajando. A menina e o tio
vão embora e o observador levanta-se para ir embora, segurando a
corrente que margeava o passeio. O tema explorado é a loucura, que é
apresentada com uma aura de romantismo, de poesia. A menina Françoise é
um ser que tenta superar a dor do acidente em que perdeu o irmão
evadindo-se da realidade. "Felicidade" apresenta o contraste entre o que
se convencionou ser feliz e o que as pessoas realmente desejam. O
infeliz aniversário é uma camisa de força, de sorrisos forçados, piadas
forçadas, discursos idem. O único momento feliz é proporcionado pela ida
ao banheiro, que traz minutos de sossego. Esse é o mundo amargo
apresentado nos contos de Vilela. As poucas esperanças que a vida
proporciona estão nas remotas possibilidades de transgressão de um
sistema opressor e fortemente estabelecido, como a loucura, a poesia, o
amor sincero, a pureza, a fantasia. Essas transgressões, entretanto, são
tentativas efêmeras e impotentes diante da máquina de perversidade que
movimenta as relações entre as pessoas.
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