Romanceiro da Inconfidência - Cecília Meirelles
Podemos dividir os fatos que compõem o Romanceiro em
três partes ou ciclos:
a) ciclo do ouro;
b) ciclo do diamante;
c) ciclo da liberdade ou inconfidência com sua
ascensão e queda.
Aí parece haver uma gradação proposital:
ouro/diamante/liberdade.
Como o ouro e o diamante, a liberdade brilhou
intensamente nas Minas Gerais, mas como o ouro e o diamante, a liberdade
só trouxe desgraças, masmorras e mortes....
a) Ciclo do ouro
O cenário colocado para o ciclo do ouro prenuncia
também o ciclo da liberdade, no qual "a mão do Alferes de longe acena"
como a querer dizer: Adeus! que trabalhar vou para todos!...
Mas essa mão que acena à liberdade e ao homem livre
será enforcada mais tarde. Por enquanto, vejamos o alvorecer do ouro
que vai brilhar intensamente nas Minas Gerais, despertando a cobiça e
ganância dos homens e, quem sabe, o sonho de liberdade dos inconfidentes
que nasceria também do ouro da terra.
Descobre-se o ouro e, por causa dele, o homem vai matando
animais, pessoas, florestas e tudo que lhe atravessa o caminho.
Desbrava-se a mata. Surgem montanhas douradas de ouro e de cobiça que
despertam uma verdadeira alucinação:
Selvas, montanhas e rios
estão transidos de pasmo.
É que avançam, terra adentro,
os homens alucinados. (Romance I)
estão transidos de pasmo.
É que avançam, terra adentro,
os homens alucinados. (Romance I)
E gerações e mais gerações de netos afundariam
nesse abismo:
Que a sede de ouro é sem cura,
e, por ela subjugados,
os homens matam-se e morrem,
ficam mortos, mas não fartos. (ib .ib)
e, por ela subjugados,
os homens matam-se e morrem,
ficam mortos, mas não fartos. (ib .ib)
Como o ouro que brota da terra, brotam também "as
sinistras rivalidades", ladrões e contrabandistas, - um clima de
intranqüilidade:
todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro. (Romance II)
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro. (Romance II)
E por amor, pelo ouro, uma donzela é assassinada
pela mão de seu pai. O ouro não permitia que a donzela acenasse a enasse
a um amor "de condição desigual" o seu lencinho" de sonho e sal"
Surge Felipe dos Santos, que assanha a fúria do
Conde de Assumar. É morto e esquartejado, mas o herói que tomba no
Arraial do Ouro Podre ficará como exemplo perene de força e de coragem
para os que virão.
O tirano conde haveria de chorar porque quem ri, chora também. O
Brasil ainda era criança - um "menino" apenas. Nasceriam outros como
Felipe dos Santos:
Dorme, meu menino, dorme,
- que Deus te ensine a lição
dos que sofrerem neste mundo
violência e perseguição
Morreu Felipe dos Santos;
outros, porém, nascerão. (Romance V)
- que Deus te ensine a lição
dos que sofrerem neste mundo
violência e perseguição
Morreu Felipe dos Santos;
outros, porém, nascerão. (Romance V)
Cria-se o quinto do ouro, cobrado a ferro e fogo: a
Coroa precisava de ouro. Há logros: D. Rodrigo César e Sebastião
Fernandes enviam para a coroa caixotes selados com "grãos de chumbo" em
vez de grãos de ouro.
Ai, que o Monarca procura
os que vão ser castigados.
os que vão ser castigados.
E o "quinto falsificado" se tornaria o décuplo de
forcas e degredos para a dourada colônia! Pela madrugada fria, rompe o
canto do negro no serviço de catar o ouro, enquanto o patrão dorme e
sonha. O negro pena e chora, canta e ri na saudade da serra, na
imensidão da terra. E na sua vida escrava, ele erra sem terra, sem
serra, sem nada:
(Deus do céu, como é possível!
penar tanto e não ter nada!) (Romance VII)
penar tanto e não ter nada!) (Romance VII)
O ouro lhe tiraria o "t" da terra e o "s" da serra e
ele erra cativo, sem liberdade, com os elos de ferro da escravidão...
Mas o ouro que brotava da terra não cativara apenas
o preto, como Chico, que também já fora rei "lá na banda em que corre o
Congo": também os brancos foram atirados naquela lama que alimentava a
ganância de reis e rainhas:
Hoje, os brancos também, meu povo,
são tristes cativos. (Romance VIII)
são tristes cativos. (Romance VIII)
Santa Ifigênia, princesa núbia, protetora dos
negros, desce às minas "vira-e-sai", depois de amenizar o sofrimento
deles.
As pessoas, por causa do ouro, iam-se embrutecendo:
movido pelo ódio, um contratador, quase assassinou um ouvidor, dentro
de uma igreja, porque este, enamorado, arremessara uma flor a uma
donzela.
Os filhos do almotacé (inspetor de pesos e medidas), sete crianças, rezam diante de Nossa Senhora da Ajuda. Joaquim José é uma delas.
Os filhos do almotacé (inspetor de pesos e medidas), sete crianças, rezam diante de Nossa Senhora da Ajuda. Joaquim José é uma delas.
As crianças pedem à Virgem que o salve "do triste
destino que vai padecer". Será em vão. A virgem não poderá atendê-los,
mesmo sendo crianças. Mais forte do que um pedido de criança é o destino
traçado para um homem! Mesmo sendo seis e irmãos do sentenciado!
(Lá vai um menino
entre seis irmãos.
Senhora da Ajuda,
pelo vosso nome,
estendei-lhe as mãos!) (Romance XII)
entre seis irmãos.
Senhora da Ajuda,
pelo vosso nome,
estendei-lhe as mãos!) (Romance XII)
O pedido agora (entre parênteses) é da poetisa à
Virgem. Não será atendida: mais forte do que o pedido de um poeta é o
destino traçado para um homem!
Mas, por enquanto, reina a bonança: "os tempos são
de ouro". A tempestade virá depois, em 1792, com a execução.
Antes de chegar a forca, porém, outro metal
brilhará intensamente nas Minas Gerais: os diamantes do Tejuco, depois
Diamantina.
b) Ciclo do diamante
Continua a corrida alucinante. Agora é a vez do
diamante nas regiões do Serro Frio e do Tejuco, onde vive o contratador
João Fernandes, "dono da terra opulenta".
Chega às suas terras, com o fim de persegui-lo, o
Conde de Valadares, homem enganoso e fingido. Hospeda na casa de João,
que lhe abre a casa e o coração das mulatas, menos o de Chica da Silva.
Sua riqueza é imensa e o fingido conde suspira de cobiça:
Deste tejuco não volto
sem ter metade das lavras,
metade das lavras de ouro,
mais outro tanto das catas;
sem meu cofre de diamantes,
todos estrelas sem jaça,
- que para os nobres do Reino
é que este povo trabalha! (Romances XIII)
sem ter metade das lavras,
metade das lavras de ouro,
mais outro tanto das catas;
sem meu cofre de diamantes,
todos estrelas sem jaça,
- que para os nobres do Reino
é que este povo trabalha! (Romances XIII)
O romance XIV apresenta Chica da Silva no seu
império de luxo, resplandecente de ouro e diamante. Comparada à rainha
de Sabá, ela tinha mais brilho que Santa Ifigênia, a princesa núbia, em
dias de festa:
(Coisa igual nunca se viu.
Dom João Quinto, rei famoso,
não teve mulher assim!)
Dom João Quinto, rei famoso,
não teve mulher assim!)
Vendo o conde tão interessado pelo João, Chica
cisma nessa falsa amizade e previne a João Fernandes:
Hoje, todo o mundo corre,
Senhor, atrás de riqueza. (Romance XV)
Senhor, atrás de riqueza. (Romance XV)
Dito e feito: o conde, traindo a hospedagem de João
Fernandes, leva-o preso, como Chica da Silva pressentira.
É a ambição do ouro (ou do diamante, que é sempre a
mesma coisa) que a todos embriaga e corrói:
Maldito o conde, e maldito
esse ouro que faz escravos,
esse ouro que faz algemas,
que levanta densos muros
para as grades das cadeias,
que arma nas praças as forças,
lavra as injustas sentenças,
arrasta pelos caminhos
vítimas que se esquartejam! (Romance XVII)
esse ouro que faz escravos,
esse ouro que faz algemas,
que levanta densos muros
para as grades das cadeias,
que arma nas praças as forças,
lavra as injustas sentenças,
arrasta pelos caminhos
vítimas que se esquartejam! (Romance XVII)
Os velhos do Tejuco, na sua experiência, pensam com
a amargura na "febre que corta o Serro Frio". João Fernandes, que até
então era senhor opulento, fora levado num navio "igual a um negro
fugido", o que dá margem a esta reflexão da autora:
(Que tudo acaba!
Quem diz que montanha de
ouro não desaba?) (Romance XVIII)
Quem diz que montanha de
ouro não desaba?) (Romance XVIII)
Acabara-se o tempo de João Fernandes e de Chica da
Silva, cravejada de brilhantes. Mas:
Sobre o tempo vem mais tempo.
mandam sempre os que são grandes:
e é grandeza de ministros
roubar hoje como dantes
vão-se as minas nos navios...
Pela terra despojada,
ficam lágrimas e sangue. (Romance XIX)
mandam sempre os que são grandes:
e é grandeza de ministros
roubar hoje como dantes
vão-se as minas nos navios...
Pela terra despojada,
ficam lágrimas e sangue. (Romance XIX)
Mas o ouro e o diamante, que brilharam tão
intensamente nas Minas Gerais, eram apenas prenúncio de um brilho maior.
Um sonho milenar, um ideal de um sol que despertaria - o sol da
liberdade que a todos iluminaria e que nem rei nem rainha, por mais
despóticos que sejam, podem tirar do homem!
Não importa que haja eclipses de vez em quando: o
sol sempre volta a brilhar depois de um eclipse...
c) Ciclo da liberdade
A poesia apresenta o cenário onde vão se desenrolar
os fatos: enumeração, sobretudo, dos lugares e fixação na névoa que
chega às ruas, move a ilusão de tempo e figuras e que trará, fatalmente,
o pranto e a saudade:
A névoa que se adensa e vai formando
nublados reinos de saudade e pranto.
nublados reinos de saudade e pranto.
O "país da Arcádia", sediado na Vila Rica de
outrora (Ouro Preto), com seus pastores e rebanhos, Nises, Marílias e
Glauceste não passou de um ideal na literatura.
Pelos céus, nuvens negras de ódio e ambições
ameaçam a doutorada terra de Ouro Preto: uma "nuvem de lágrimas" está
prestes a desabar sobre "o país da Arcádia" - a "pastoral dourada":
O país da Arcádia,
súbito, escurece,
em nuvem de lágrimas.
Acabou-se a alegre
pastoral dourada:
pelas nuvens baixas,
a tormenta cresce. (Romance XX)
súbito, escurece,
em nuvem de lágrimas.
Acabou-se a alegre
pastoral dourada:
pelas nuvens baixas,
a tormenta cresce. (Romance XX)
E a Arcádia serena ficava cada vez mais carregada:
agitação, correrias, ódio, ambições, países que se libertam, "a Europa a
ferver em guerras". Portugal com uma rainha louca: - um imenso tumulto
humano.
As idéias fervilhavam as mentes de padres e poetas.
Mas, por trás das janelas, ouvidos que escutam...
O país da Arcádia estava carregado de "idéias".
Um príncipe que morre, filho de D. MariaI, a rainha
louca, em 1788, é também uma esperança que morre. Nas exéquias do
príncipe, muita agitação. Alguma coisa está sendo tramada - "já ninguém
quer ser vassalo" e:
A palavra Liberdade
vive na boca de todos:
quem não a proclama aos gritos,
murmura-a em tímido sopro. (Romance XXIII)
vive na boca de todos:
quem não a proclama aos gritos,
murmura-a em tímido sopro. (Romance XXIII)
Com pouco mais surgirá a bandeira da liberdade...
"Atrás de portas fechadas", os líderes de "fardas e
casacas (= militares, poetas), junto com batinas pretas" discutem e
planejam a inconfidência. A bandeira com seu lema é escolhida e há um
sobressalto, quando se fala em liberdade:
E os seus tristes inventores
já são réus - pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja),
Liberdade - essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!) (Romance XXIV)
já são réus - pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja),
Liberdade - essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!) (Romance XXIV)
Por causa dessa palavra - espinha dorsal do homem
de todos os tempos - um rio de sangue está iminente: uma carta anônima
que se recebeu "fala de rios propínquos / rios de lágrimas e sangue /
que vão correr por aqui".
E na "semana santa de 1789", enquanto na França a
liberdade rompia os grilhões da Bastilha, nas terras douradas de Minas, a
mesma idéia se fermentava para ser depois enforcada, na pessoa de
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes:
Deus, no céu revolto,
seu destino escreve.
Em baixo, na terra,
ninguém o protege;
é o talpídeo , o louco,
- o animoso Alferes. (Romance XXVII)
seu destino escreve.
Em baixo, na terra,
ninguém o protege;
é o talpídeo , o louco,
- o animoso Alferes. (Romance XXVII)
Mas "no grande espelho do tempo", a poetisa vê
também "o impostor caloteiro" Joaquim Silvério :
(quem em tremendos labirintos
prende os homens indefesos
e beija os pés dos ministros!) (Romance XXVIII)
prende os homens indefesos
e beija os pés dos ministros!) (Romance XXVIII)
No "riso dos tropeiros" está colocado um aspecto de
Tiradentes que a tradição confirma (inclusive um lira de Gonzaga), a
loucura, pois:
falava contra o governo,
contra as leis de Portugal. (Romance XXX)
contra as leis de Portugal. (Romance XXX)
Sem dúvida, essa loucura deve ser entendida de
outra forma: a audácia de um homem que se levanta, sem força e sem
armas, contra um governo despótico e tirânico. É o que parece querer
dizer a poetisa, no Romance XXXI:
(Pobre daquele que sonha
fazer bem - grande ousadia -
quando não passa de Alferes
de cavalaria!)
fazer bem - grande ousadia -
quando não passa de Alferes
de cavalaria!)
É certamente por isso que "o povo todo seria",
porque o povo nunca ri sem razão...
Aliás, neste sentido, é preciso também o depoimento do "cigano que viu chegar o Alferes", quando diz no Romance XXXIII:
Aliás, neste sentido, é preciso também o depoimento do "cigano que viu chegar o Alferes", quando diz no Romance XXXIII:
(Fala e pensa como um vivo,
mas deve estar condenado.
Tem qualquer coisa no juízo,
mas em ser um desvairado.)
mas deve estar condenado.
Tem qualquer coisa no juízo,
mas em ser um desvairado.)
O Romance XXXIV, confrontando o delator Joaquim
Silvério com Judas, a escritora conclui que aquele levou a melhor, pois
ele (Judas) encontra remorso / coisa que não te (= a Silvério) acontece.
Fechando o romance, entre parênteses, há uma
reflexão poética profunda, quando fala da "força de vermes", ou seja,
dos delatores, dos maus, enquanto os bons apenas "sonham".
(Pelos caminhos do mundo,
nenhum destino se perde:
há os grandes sonhos dos homens
e a surda força dos vermes.)
nenhum destino se perde:
há os grandes sonhos dos homens
e a surda força dos vermes.)
Aliás, é o que ocorre também no romance "do
suspiroso Alferes", onde há, igualmente, um lamento profundo sobre o
comodismo do homem face à situação que o envolve:
(Todos querem liberdade,
mas quem por ela trabalha?)
(O humano resgate custa
pesadas carnificinas!
Quem more, para dar vida?
Quem quer arriscar seu sangue?)
mas quem por ela trabalha?)
(O humano resgate custa
pesadas carnificinas!
Quem more, para dar vida?
Quem quer arriscar seu sangue?)
E é exatamente esse comodismo, dos bons que é a
força dos maus, dos traidores, dos déspotas da liberdade:
Mas os traidores labutam
nas funestas oficinas:
vão e vêm as sentinelas
passam cartas de denúncia...
nas funestas oficinas:
vão e vêm as sentinelas
passam cartas de denúncia...
Na "noite escura" de 10 de maio de 1789, prenderam o
Tiradentes com seus pensamentos de liberdade. Há um lamento profundo de
desespero e dor por estar sozinho na luta pela liberdade:
Minas da minha esperança,
Minas do meu desespero!
Agarram-me os soldados,
como qualquer bandoleiro.
Vim trabalhar para todos,
e abandonado me vejo.
Todos tremem. Todos fogem.
A quem dediquei meu zelo? (Romance XXXXVII)
Minas do meu desespero!
Agarram-me os soldados,
como qualquer bandoleiro.
Vim trabalhar para todos,
e abandonado me vejo.
Todos tremem. Todos fogem.
A quem dediquei meu zelo? (Romance XXXXVII)
E o medo e a ansiedade se espalham por toda Minas
Gerais. No fim do mesmo maio, prendem os outros suspeitos:
Andam as quatro comarcas
em grande desassossego:
vão soldados, vêm soldados;
tremem os brancos e os negros.
Se já levaram Gonzaga
e Alvarenga, mas Toledo!
Se a Cláudio mandam recados
para que se esconda a tempo!
em grande desassossego:
vão soldados, vêm soldados;
tremem os brancos e os negros.
Se já levaram Gonzaga
e Alvarenga, mas Toledo!
Se a Cláudio mandam recados
para que se esconda a tempo!
Outros implicados menores vão sendo presos. Há
"conversas indignadas" - há também "testemunha falsa". Há até mesmo um
"embuçado" envolto em panos e mistério que pretende salvar o poeta
Cláudio Manuel da Costa.
Mas todos terão seu fim.
O padre Rolim, famoso por suas safadezas, estava na iminência de ser preso. O problema era determinar o seu crime, já que, além da suspeita de inconfidente, era culpado também, segundo o falatório:
O padre Rolim, famoso por suas safadezas, estava na iminência de ser preso. O problema era determinar o seu crime, já que, além da suspeita de inconfidente, era culpado também, segundo o falatório:
por ter arrombado a mesa
de um juiz, em certa devassa;
por extravio de pedras;
por causa de uma mulata;
por causa de uma donzela;
por uma mulher casada. (Romance XLV)
de um juiz, em certa devassa;
por extravio de pedras;
por causa de uma mulata;
por causa de uma donzela;
por uma mulher casada. (Romance XLV)
Mas o padre, que não era nada bobo, enquanto as
autoridades discutiam a sua prisão, "pulando cercas e muros", fugiu,
levando consigo os seus sete pecados ou setenta -e sete...
Nos "seqüestros" das casas e bens, "tudo é visto e
resolvido" pelos executores da lei, havia de tudo, até mesmo:
as sugestões perigosas
de França e Estados Unidos
Mably, Voltaire e outros tantos,
que são todos libertinos... (Romance XLVII)
de França e Estados Unidos
Mably, Voltaire e outros tantos,
que são todos libertinos... (Romance XLVII)
Antes de prosseguir no trabalho de dar fim aos
inconfidentes, a autora interrompe a narrativa para fazer uma belíssima
reflexão na Fala aos Pusilânimes, na qual condena os que não tiveram a
coragem, a audácia de acender o pavio da chama da liberdade; os que
sonharam e deixaram que seus sonhos fossem pelos espaços infindos, como
bolhas etéreas...
Mas o fenômeno é eterno e universal - a estirpe dos
pusilânimes sempre existiu e existirá na face da terra:
- só por serdes os pusilânimes,
os da pusilânime estirpe,
que atravessa a história do mundo
em todas as datas e raças,
como veia de sangue impuro
queimando as puras primaveras,
enfraquecendo o sonho humano
quando as auroras desabrocham!
os da pusilânime estirpe,
que atravessa a história do mundo
em todas as datas e raças,
como veia de sangue impuro
queimando as puras primaveras,
enfraquecendo o sonho humano
quando as auroras desabrocham!
E a liberdade que foi traída pela pusilanimidade
dos que sonhavam com ela ficará gravada nos "céus eternos" como um eco
sombrio que chama ao ajuste de contas e à condenação eterna:
O vós, que não sabeis do Inferno,
olhai, vinde vê-lo, o seu nome
é só - PULSILANIMIDADE.
olhai, vinde vê-lo, o seu nome
é só - PULSILANIMIDADE.
Mistério paira sobre o fim do poeta Cláudio, que é
também a versão da história. Suicídio? Fuga? Rapto? - As dúvidas parecem
justificáveis: Cláudio era secretário do governo e afilhado de João
Fernandes. Daí o interesse por livrá-lo da masmorra e do desterro.
De qualquer modo paira o mistério:
Entre esta porta e esta ponte,
fica o mistério parado.
Aqui, Glauceste Satúrnio ,
morto, ou vivo disfarçado,
deixou de existir no mundo
em fábula arrebatado. (Romance XLIX)
fica o mistério parado.
Aqui, Glauceste Satúrnio ,
morto, ou vivo disfarçado,
deixou de existir no mundo
em fábula arrebatado. (Romance XLIX)
Tomás Antônio Gonzaga, o Dirceu da Marília, também
tem fim sombrio na masmorra da Ilha das Cobras, interrompendo, assim, o
enxoval de Maria Dorotéia (Marília) de quem era noivo.
Depois foi desterrado para as terras da África
negra (Moçambique), onde se casa com Juliana Mascarenhas , deixando do
outro lado do mar e da vida a pobre e inconsolável Marília a quem
celebrara em inúmeras e ardentes liras de amor, em Marília de Dirceu.
Enfim, em questões amorosas, o homem é sempre um
pombo enigmático...
Há dúvidas quanto à sua real participação na
Inconfidência como procura demonstrar Rodrigues Lapa em estudo a seu
respeito. Aliás, o próprio Gonzaga em uma das liras de Marília de Dirceu
procura se inocentar junto ao Visconde de Barbacena.
Cecília Meireles também deixa transparecer a mesma
dúvida, ao indagar:
Inocente, culpado?
Enganoso? Sincero? (Romance LV)
Enganoso? Sincero? (Romance LV)
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi
enforcado a 21 de abril de 1792, três anos depois de ser preso. Como
atestam diversas passagens do Romantismo, era considerado louco por
causa das idéias que tinha. Depois de morto, virou herói:
Que os heróis chegam à gloria
só depois de degolados.
Antes, recebem apenas
ou compaixão ou desdém. (Romance XLIV)
só depois de degolados.
Antes, recebem apenas
ou compaixão ou desdém. (Romance XLIV)
A passos lentos, ele caminha sereno para o
cadafalso onde o espera, um tanto aflito, o negro Capitania, que o
executará. E diz o mártir:
Ó, permita que te beije
os pés e as mãos...Nem te importe
arrancar-me este vestido...
Pois também na cruz, despido
morreu quem salva da morte!
os pés e as mãos...Nem te importe
arrancar-me este vestido...
Pois também na cruz, despido
morreu quem salva da morte!
E o negro Capitania lamenta a sua sorte de carrasco
oficial do grande sonho humano - a liberdade:
Vede o carrasco ajoelhado,
todo em lágrimas lavado,
lamentar a sua sorte! (Romance LVIII)
todo em lágrimas lavado,
lamentar a sua sorte! (Romance LVIII)
Só um carrasco lavou-se em lágrimas! Os outros
seriam lavados com o sangue daquele mártir que tombava...
O cenário agora era desolador e triste: nada mais
restava dos sonhos e ideais pretéritos. Tudo fora destruído pelas mãos
dos delatores da vida, porque a vida está na liberdade.
Tudo agora estava reduzido a "um chão sem ouro nem
diamante". Nada mais brilhava nas terras douradas de Minas Gerais!
Também os tiranos tiveram o seu fim.
A rainha D. Maria I, que mandara executar os
inconfidentes da sua coroa, acaba se tornando prisioneira do seu próprio
destino: ela que executava tantos, com masmorras , desterros, forcas,
torna-se prisioneira da loucura que é pior que qualquer masmorra,
desterro ou morte de forca.
O destino agora se voltava contra a grande déspota
da liberdade!
Ai, que a filha da Marianinha
jaz em cárcere verdadeiro,
sem grade por onde se aviste
esperança, tempo, luzeiro...
prisão perpétua, exílio estranho,
sem juiz, sentença ou carcereiro...
Terras de Angola e Moçambique,
mais doce é vosso cativeiro! (Romance LXXIV)
jaz em cárcere verdadeiro,
sem grade por onde se aviste
esperança, tempo, luzeiro...
prisão perpétua, exílio estranho,
sem juiz, sentença ou carcereiro...
Terras de Angola e Moçambique,
mais doce é vosso cativeiro! (Romance LXXIV)
Pela "comarca do Rio das Mortes (= S.João Del-Rei),
Dona Bárbara Eliodora, "a estrela do norte" do poeta Alvarenga Peixoto,
naufragava em lágrimas e mágoas: seu doce Alceu também fora desterrado
para as longínquas terras d´África, em Angola (Ambaca).
Agora as amenas colinas de outrora, onde o gado
pastava, onde as flores sorriam, onde os regatos corriam, onde os
pássaros cantavam, eram um montão de ruínas e desolação ante o olhar
magoado e amargurado da rica e poética Eliodora.
Pela "comarca do Rio das Mortes" também dormia o
padre Toledo, "paulista de grande raça / mação, conforme o seu tempo".
Pela "comarca do Rio das Mortes" também passara e
se fora Maria Ifigênia, fruto primaveril do casal Bárbara - Alvarenga:
Vai ver sua mãe demente
Vai ver seu pai degredado... (Romance LXXVII)
Vai ver seu pai degredado... (Romance LXXVII)
Também Marília se desfigurou pelo tempo e pela
Inconfidência. O seu retrato agora é o de uma mulher macerada pela dor:
já não pertence mais à terra:
é só na morte que está viva
é só na morte que está viva
Agora, tudo jaz em silêncio: amor, inveja, ódio,
inocência, no imenso tempo se estão lavando, declara a poetisa na Fala
aos inconfidentes mortos.
No horizonte eterno há de ficar sempre o anseio de
liberdade, e só o purgatório do tempo está apto às ações vis e nobres
dos homens da terra:
Quais os que tombam,
em crimes exaustos,
quais os que sobem
em crimes exaustos,
quais os que sobem
Considerações Gerais
Como o nome sugere, romanceiro é uma coleção de
romances. Romance deve ser entendido, nesse caso, como um gênero de
origem medieval, muito característico na península Ibérica, constituído
de narrativas breves, sob forma de poemas épico - líricos , que
originalmente eram cantados ao som de um instrumento, celebrando as
aventuras e proezas de um herói de cavalaria ou fatos da nacionalidade
de um povo.
Preservadas pela memória popular, oralizados de
forma fragmentária pelo povo, algumas ações mudavam de natureza e
tomavam vida independente: ao lado das imagens objetivas e da narração,
peculiares ao gênero épico - lírico , no qual se impõem notas de emoção e
subjetividade, e o gênero dramático - lírico, no qual predominam os
diálogos.
Etimologicamente , o termo origina-se do latim romanice, ou
seja, as narrativas eram feitas no loqui romanice (falar à maneira de
Roma).
Segundo Cecília Meireles, anos depois da publicação
do Romanceiro, em Ouro Preto, no I Festival da cidade onde se deu a
Inconfidência:
"Muitas vezes me perguntei porque não teria
existido um escritor do século XVIII - e houve tantos, em Minas! - que
pudesse por escrito essa grandiosa e comovente história. Mas há duzentos
anos de distância pode-se entender por que isso não aconteceu,
principalmente se levarmos em conta o traumatismo provocado por um
episódio desses, em tempos de duros castigos, severas perseguições,
lutas sangrentas pela transformação do mundo, em grande parte
estruturada por instituições secretas, de invioláveis arquivos.
Também muitas vezes me perguntei se devia obedecer a
esse apelo dos meus fantasmas, e tomar o encargo de narrar a estranha
história de que haviam participado e de que me obrigaram a participar
também, tantos anos depois, de modo tão diferente, porém, com a mesma,
ou talvez maior, intensidade.
Sem sombra de pessimismo, posso, no entanto,
confirmar por experiência a verdade de que somos sempre e cada vez mais
governados pelos mortos.
No decorrer das minhas incertezas e dos meus
escrúpulos em aproximar-me de tema tão grave, os fantasmas começaram a
repetir suas próprias palavras de outrora: as palavras registradas no
depoimento do processo, ou na memória tradicional, vinham muitas vezes e
inesperadamente, já metrificadas.(...) Até os nomes de alguns
personagens foram versos perfeitos:
"To/más/An/tô/nio/Gon/za/ga"
1 2 3 4 5 6 7
"Do/na/Bár/ba/ra E/lio/do/ra"
1 2 3 4 5 6 7
"Joa/quim/Jo/sé/da/Sil/va/Xa/vi/er"
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
"To/más/An/tô/nio/Gon/za/ga"
1 2 3 4 5 6 7
"Do/na/Bár/ba/ra E/lio/do/ra"
1 2 3 4 5 6 7
"Joa/quim/Jo/sé/da/Sil/va/Xa/vi/er"
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Assim, a primeira tentação diante do tema insigne, e
conhecendo-se, tanto quanto possível, através dos documentos do tempo,
seus pensamentos e sua fala, seria reconstituir a tragédia na forma
dramática em que foi vivida, redistribuindo a cada figura o seu
verdadeiro papel. Mas se isso bastasse, os documentos oficiais com seus
interrogatórios e respostas, suas cartas, sentenças e defesas
realizariam a obra de arte ambicionada, e os fantasmas sossegariam,
satisfeitos.
Os "Cenários", os "Romances" e as "Falas"
Há três estruturas que se alternam no poema: os
romances, os cenários e as falas.
Os romances , em número de oitenta e cinco,
reconstituem a história, compondo o fio narrativo;
os cenários situam os ambientes, marcando as mudanças de
atmosfera e localizando os acontecimentos;
e as falas representam uma intervenção do poeta- narrador ,
tecendo comentários e convidando o leitor a refletir sobre os fatos
revividos no relato.
Os romances não são dispostos na seqüência
cronológica dos acontecimentos; ora aparecem isolados, ora constituem-se
em verdadeiros ciclos (o de Chica da Silva, o do Alferes, o de Gonzaga,
o da Morte de Tiradentes , o de Gonzaga no exílio, o de Bárbara
Heliodora , o da Rainha D. Maria).
Três fragmentos de falas:
Fala Inicial
Não posso mover meus passos
Por esse atroz labirinto
De esquecimento e cegueira
Em que amores e ódios vão:
- pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
- avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
- descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.
Por esse atroz labirinto
De esquecimento e cegueira
Em que amores e ódios vão:
- pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
- avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
- descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.
...
Ó meio-dia confuso,
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem condena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
Cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados ...
- liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
e o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentiras e verdade estão.
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem condena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
Cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados ...
- liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
e o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentiras e verdade estão.
...
Não choraremos o que houve,
nem os que chorar queremos:
contra rocas de ignorância
rebenta nossa aflição.
Choraremos esse mistério,
esse esquema sobre-humano,
a força, o jogo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em pólos inexoráveis
de ruína e de exaltação.
Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão!
nem os que chorar queremos:
contra rocas de ignorância
rebenta nossa aflição.
Choraremos esse mistério,
esse esquema sobre-humano,
a força, o jogo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em pólos inexoráveis
de ruína e de exaltação.
Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão!
Características do Romanceiro
a) A herança simbolista e o espiritualismo: um ar
de mistério, de crença no imaterial, no extraterreno, perpassa todo o
poema. O culto do etéreo, das palavras aéreas marca a ânsia de dar forma
ao informe. Expressões como: atroz labirinto de esquecimento, mistério ,
esquema sobre-humano, silenciosas vertentes, inexplicáveis torrentes
instauram um halo espiritualista de crença no imaterial.
b) A utilização do redondilho maior (verso
heptassilábico ), sem rimas externas regulares (versos brancos), e a
exploração da camada sonora, através de aliterações e assonâncias ,
conferem à Fala Inicial um tom enfático, declaratório , reforçado pelas
exclamações e interrogações.
c) O tom evocativo: o mergulho no passado, no atroz
labirinto do tempo, nas ressonâncias incansáveis de Vila Rica revela a
ânsia da procura de um significado para os fatos: Ó meio-dia confuso / ó
vinte-e-um de abril sinistro, / que intrigas de ouro e de sonho / houve
em tua formação? / Quem condena, julga e pune? Quem é culpado e
inocente?. É como se a poetisa, evocando Tiradentes na força,
questionasse a casa do martírio. Foi a ambição do ouro? Foi o sonho de
liberdade que iluminou aquela gente?
d) O tom inquiridor: o clima de mistério e
ansiedade, as lacunas históricas incontornáveis e a busca de um sentido
para os fatos projetam-se nas interrogativas que surgem a cada momento.
Revelando o mistério que envolve até hoje o "embuçado" e a morte de
Cláudio Manuel da Costa, o Romance XXXVIII é composto só de
interrogações. O embuçado teria sido um mensageiro mascarado,
disfarçado, que viera para tentar salvar Cláudio Manuel da Costa: Homem
ou mulher? Quem soube? / Veio por si? Foi mandado? / A que horas foi? De
que noite? / Visto ou sonhado?.
e) A dualidade: reflete a ambivalência ou
ambigüidade que caracterizam as ações do homem - herói e traidor, ódio e
amor, punhal e flor, bons e maus, riqueza e miséria. Observe, na Fala
Inicial: amores x ódios (v.4); intrigas de outo e de sonho; (v.19);
culpado x inocente (v.22); castigo x perdão (v.24), coroas x machados
(v.31); mentira x verdade (v.32); ruínas x exaltação (v.43).
Ganham relevo as passagens que refletem a dualidade
entre a justiça e a tirania, entre a liberdade e a opressão:
Em baixo e em cima da terra
o ouro um dia vai secar.
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem sabe não presta, fica vivo,
quem é bom, mandam matar. (Romance V)
o ouro um dia vai secar.
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem sabe não presta, fica vivo,
quem é bom, mandam matar. (Romance V)
Ai, terras negras d´África,
portos de desespero...
- quem parte, já vai cativo;
- quem chega, vem por desterro. (Romance LXVII)
portos de desespero...
- quem parte, já vai cativo;
- quem chega, vem por desterro. (Romance LXVII)