O primeiro romance de Lima
Barreto é uma forte crítica à sociedade hipócrita e preconceituosa e a
imprensa (que ele mesmo fez parte). É um livro pungente em todos os
sentidos, de leitura obrigatória.
O jovem Isaías Caminha, menino do interior,
tomou gosto pelos estudos através da desigualdade de nível mental entre o
seu pai, um ilustrado vigário, e sua mãe. Admirava o pai que lhe
contava histórias sobre grandes homens. Esforçou-se muito nas instruções
e pouco brincava. Tinha ambições e um dia finalmente decide ir para o
Rio fazer-se doutor: "Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original
do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e
omnímodo de minha cor... Nas dobras do pergaminho da carta, traria presa
a consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade de
homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia,
não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos
que se estorciam no meu cérebro. [...] Quantas prerrogativas, quantos direitos
especiais, quantos privilégios, esse título dava! Podia ter dois e mais
empregos apesar da Constituição; teria direito à prisão especial e não
precisava saber nada. Bastava o diploma. Pus-me a considerar que isso
devia ser antigo... Newton, César, Platão e Miguel Ângelo deviam ter
sido doutores!" Aconselha-se com o tio Valentim. Este visita o Coronel Belmiro,
chefe eleitoral local, que redige uma carta recomendando Isaías para o
Doutor Castro, deputado. Segue paro o Rio com algum dinheiro e esta
carta. Instala-se
no Hotel Jenikalé, na Praça da República e conhece o Senhor Laje da
Silva - diz ser padeiro e é incrivelmente afável com todos, em especial
com os jornalistas. Através dele conhece o doutor Ivã Gregoróvitch
Rostóloff, jornalista de O Globo, romeno, sentia-se sem pátria e falava
10 línguas. Vai assim conhecendo o Rio de Janeiro. Decide procurar o
Deputado Castro para conseguir seu emprego e poder cursar Medicina. Dirige-se a
Câmera: "subi pensando no ofício de legislar que ia ver exercer pela
primeira vez, em plena Câmera dos Senhores Deputados - augustos e
digníssimos representantes da Nação Brasileira. Não foi sem espanto que
descobri em mim um grande respeito por esse alto e venerável ofício
[...] Foi com grande surpresa que não senti naquele doutor Castro,
quanto certa vez estive junto dele, nada que denunciasse tão poderosa
faculdade. Vi-o durante uma hora olhar tudo sem interesse e só houve um
movimento vivo e próprio, profundo e diferencial, na sua pessoa, quando
passou por perto uma fornida rapariga de grandes ancas, ofuscante
sensualidade." Tenta falar com o doutor Castro mas não consegue. Quando
finalmente consegue, visitando a sua residência particular (casa da
amante) este o recebe friamente dizendo que era muito difícil arranjar
empregos e mando o procurar no outro dia. Caminha depois descobre que o
deputado estava de viajem para o mesmo dia e é tomado por um acesso de
raiva: Patife!
Patife! A minha indignação veio encontrar os palestradores no máximo de
entusiasmo. O meu ódio, brotando naquele meio de satisfação, ganhou
mais força [...] Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os
respeita e prestigia! Porque não lhes examinam as ações, o que fazem e
para que servem? Se o fizessem... Ah! Se o fizessem! Com o dinheiro no
fim, sem emprego, recebe uma intimação para ir à delegacia. O hotel
havia sido roubado e prestava-se depoimentos. Ao ouvir as palavras do
Capitão Viveiros: "E o caso do Jenikalé? Já apareceu o tal "mulatinho"?"
Isaías reflete: Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado
assim, as lágrimas me vieram aos olhos. Eu saíra do colégio, vivera
sempre num ambiente artificial de consideração, de respeito, de atenções
comigo [...] Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés destes e
outros mais brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte talvez;
aos meus olhos, porém, muito diminuído de mim próprio, do meu primitivo
ideal [...] Entretanto, isso tudo é uma questão de semântica: amanhã,
dentro de um século, não terá mais significação injuriosa. Essa
reflexão, porém, não me confortava naquele tempo, porque sentia na
baixeza de tratamento, todo o desconhecimento das minhas qualidades, o
julgamento anterior da minha personalidade que não queriam ouvir, sentir
e examinar. Levado a presença do delegado, começa o interrogatório: "Qual é a sua
profissão?" "Estudante." "Estudante?!"
"Sim, senhor, estudante, repeti
com firmeza." "Qual estudante, qual nada!" A sua surpresa
deixara-me atônito. Que havia nisso de extraordinário, de impossível? Se
havia tanta gente besta e bronca que o era, porque não o podia seu eu?
Donde lhe vinha a admiração duvidosa? Quis-lhe dar uma resposta mas as
interrogações a mim mesmo me enleavam. Ele por sua vez, tomou o meu
embaraço como prova de que mentia." Com ar de escarninho perguntou: "Então você é
estudante?". Dessa vez tinha-o compreendido, cheio de ódio, cheio de um
santo ódio que nunca mais vi chegar em mim. Era mais uma variante
daquelas tolas humilhações que eu já sofrera; era o sentimento geral da
minha inferioridade, decretada a priori, que eu adivinhei na sua
pergunta. O delegado continua o interrogatório até arrebatar chamando
Caminha de malandro e gatuno, que, sentindo num segundo todas as
injustiças que vinha sofrendo chama o delegado de imbecil. Foi para o
xadrez. Passa
pouco mais de 3 horas na cela e é chamado ao delegado. Este se mostra
amável, tratando-o por "meu filho", dando-lhe conselhos. Caminha sai da
delegacia e decide mudar-se também do hotel. Passa a procurar emprego
mas na primeira negação percebe que devido a sua cor seria muito difícil
se ajustar na vida. Passa dias perambulando pelas ruas do Rio, passando
fome, vendendo o que tinha para comer algo, até avistar Rostóloff que o
convida para dar um passada na redação de O Globo - onde passa a
trabalhar como contínuo. Nesta altura a narrativa sofre um corte. A ação
de Caminha é posta de lado para descrever minunciosamente os
funcionamentos da imprensa carioca. Todas as características dos grandes
jornalistas, desde o diretor de O Globo, Ricardo Loberant aos demais
redatores e jornalistas são explicitadas de maneira cruel e mordaz. O diretor é
retratado como ditador, temido por todos, com apetite de mulheres e
prazer, visando somente ao aumento das vendas do seu jornal. Somos
apresentados então a inúmeros jornalistas como Aires d'Avila,
redator-chefe, Leporace, secretário, Adelermo Caxias, Oliveira, Menezes,
Gregoróvitch. A tônica de O Globo era a crítica acerba ao governo e
seus "desmandos", Loberant se considerava o moralizador da República.
Isaías se admira com a falta de conhecimento e dificuldade para escrever
desses homens que nas ruas eram tratados como semi-deuses e defensores
do povo. Por este tempo, Caminha havia perdido suas grandes ambições e
acostumava-se com o trabalho de contínuo. É notável o que se diz do crítico literário
Floc (Frederico Lourenço do Couto) e do gramático Lobo - os dois mais
altos ápices da intelectualidade do Globo. Lobo era defensor do purismo,
de um código tirânico, de uma língua sagrada. Acaba num hospício, sem
falar, com medo que o falar errado o tenha impregnado e tapando os
ouvidos para não ouvir. Floc "confundia arte, literatura, pensamento com
distrações de salão; não lhes sentia o grande fundo natural, o que pode
haver de grandioso na função da Arte. Para ele, arte era recitar versos
nas salas, reqüestar atrizes e pintar umas aquarelas lambidas,
falsamente melancólicas. [...] as suas regras estéticas eram as suas
relações com o autor, as recomendações recebidas, os títulos
universitários, o nascimento e a condição social." Certa noite, volta
entusiasmado de uma apresentação de música e vai escrever a crônica para
o dia seguinte. Após algum tempo, o paginador o apressa. Ele manda
esperar. Floc tenta escrever o que viu e ouvira, mas seu poder criativo é
nulo, sua capacidade é fraca. Ele se desespera. O que escreve rasga.
Após novo pedido do paginador, ele se levanta, dirige-se a um
compartimento próximo e se suicida com um tiro na cabeça. Estando a redação
praticamente vazia, o redator de plantão chama Isaías e pede para que
ele se dirija para o local onde Ricardo Loberant se encontra e jurasse
que nunca diria o que viu. Isaías vai ao local indicado e surpreende
Loberant e Aires d'Avila numa sessão de orgia e os chama apressadamente
para o jornal. Loberant passa então a olhar com mais atenção a Isaías e o
promove até repórter. Divide confidências e farras. Isaías ganha a
proteção e dinheiro de Ricardo Loberant. Depois da euforia inicial,
Isaías se ressente. Lembrava-me de que deixara toda a minha vida
ao acaso e que a não pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que
era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de falta de
decisão e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres...
Sentia-me parasita, adulando o diretor para obter dinheiro... Em dado momento do
livro, Lima Barreto escreve: "Não é o seu valor literário que me
preocupa; é a sua utilidade para o fim que almejo." Valor literário
entenda-se como o "valor" vigente naquela época, do escrever bonito e
empolado, gramaticalmente correto, em busca de palavras desconhecidas em
empoerados dicionários, em busca da forma. Literatura era tudo, menos
comunicação e arte.
Resumos / Material
'