Resumos / Material
'
terça-feira, 8 de junho de 2010
Os Maias - Eça de Queiroz
Postado por Marlon às 18:45
Em junho de 1888, os livreiros portugueses começaram a vender
os primeiros dos cinco mil exemplares da primeira edição de Os Maias. É
tiragem que impressiona ainda hoje. O que dizer então naqueles tempos de
um Portugal pouco habitado e não muito lido? Foi uma temeridade, mas à
audácia dos editores correspondeu a curiosidade dos leitores e o
interesse da crítica. E o livro do desconfiado Eça de Queiroz
transformou-se, desde então, num sucesso de vendas. E assim é (ou voltou
a ser) hoje em dia. Andou uns tempos esquecido, é verdade, mas bastou
que a televisão fosse buscar inspiração (palavra perigosa) no velho
romance, para que as novas reedições sumissem, recém-chegadas às
livrarias, pouco antes do Natal, e fossem totalmente consumidas pouco
antes do novo ano. Eça de Queiroz foi impreciso e modesto ao dar a Os
Maias o subtítulo "episódios da vida romântica". Na verdade, o seu mais
famoso romance é uma tragédia, tal como a entendia Sófocles quando, já
na maturidade, compôs o seu Édipo. Uma tragédia burguesa, mas quand même
uma tragédia, pois que lá está a grave transgressão moral, cometida em
completa inconsciência por seus dois personagens centrais — Carlos
Eduardo e Maria Eduarda. Da Maia, ambos; irmãos, apaixonados e
incestuosos ambos, e belos e trágicos. Invejo quem agora, instigado pela
minissérie, vai ler esse livro pela primeira vez. Terá prazer único e
irreproduzível. As releituras que hão de vir, mais tarde, servirão de
consolo, mas não de substituto. Esse prazer estará certamente na
elegância barroca da forma e no desenvolvimento astucioso do entrecho.
Mas estará também, ou principalmente, nos admiráveis retratos que Eça
faz de seus tipos principais, com a elegância e a minúcia de um genial
pintor romântico, mas com "o seu olho à Balzac". A começar não por um
tipo, mas por uma casa, mais exatamente a "casa que os Maias vieram
habitar em Lisboa, no outono de 1875", que surge, penumbrosa e
prenunciadora, logo na primeira frase do livro, e que era conhecida como
a casa do ramalhete "ou, mais simplesmente, o Ramalhete". Então, lemos,
já encantados: "Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o
Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de
estreitas janelas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila
de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho
de residência eclesiástica que competia a uma edificação dos tempos da
Sra. D. Maria I; com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia
a um colégio de jesuítas". Ai está o cenário da tragédia. O Ramalhete
é, pela ordem de entrada, o primeiro personagem em cena, com suas
paredes sempre fatais àquela antiga família da Beira, tão rica e tão
infeliz. E será no Ramalhete e em torno dele que vamos ser apresentados
aos personagens nos quais Eça de Queirós se insinua, para nos falar
através de suas muitas vozes. Seus retratos eram sempre perfeitos e, ao
longo da trama, coerentes. A única personagem que o confunde é Maria
Eduarda, por sua beleza de deusa. Quando ela aparece — e como custa a
aparecer! —, "é alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito
escuro que realçava o esplendor da sua carne"; algumas páginas adiante,
Carlos a revê e nota que "os cabelos não eram louros, como julgara de
longe, à claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e
castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa". Falei
de retratos e o mais correto é falar de auto-retratos. Se Fernando
Pessoa tinha seus heterônimos, Eça tinha os seus "eus", como diz Beatriz
Berrini, que eram muitos e muito se pareciam. Ele nos fala pela voz
severa do velho Afonso da Maia, que "era um pouco baixo, maciço, de
ombros quadrados e fortes...o cabelo branco todo cortado à escovinha, e a
barba de neve, aguda e longa", a reclamar melhores destinos para o seu
lamentável país e a cobrar, do neto tão promissor, menos diletantismo e
mais realizações. Fala-nos também com as palavras cruéis e
desassombradas do neto Carlos, "um formoso e magnífico moço, alto,
bem-feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis de
cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistíveis olhos do
pai, dum negro líquido, ternos como os dele e mais graves", e que
costumava vociferar: "A única coisa a fazer em Portugal é plantar
legumes, enquanto não há uma revolução que faça subir à superfície
alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto ainda encerre lá
no fundo". Ao que o avô respondia, já impaciente com esse diletantismo
do neto, como se falasse em nome do autor: — Pois então façam vocês essa
revolução. Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa! Mas nenhum de
seus "eus" foi mais ele mesmo que João da Ega, ou João da Eça, ou o Ega
de Queirós, que todos esses trocadilhos, embora fáceis, têm cabimento e
justeza. Talvez só o Fradique Mendes se lhe possa comparar, mas esse não
vem ao caso, agora, porque não é personagem d´Os Maias. Eram "eus"
idealizados e muita vez caricaturados, mas que, no fundo, o reproduziam
com verdade e o exprimiam com coerência. Ao Ega, deu-lhe o Eça a
existência que gostaria de ter tido: discutido e admirado, com a mãe
devota, rica e viúva, a lhe garantir o presente e o futuro,
permitindo-lhe desfrutar as sofisticações, as intimidades e os desvelos
de uma família de aristocratas, como era a dos Maias; mais alguns amores
ardentes e com saúde razoavelmente forte para gozar, sem medos nem
cuidados, o prazer das boas comidas e dos bons vinhos, dos conhaques e
das águas ardentes, das noitadas com espanholas e das devassidões
vespertinas, com amantes de luxo. É conclusão a que se chega no momento
em que Eça retrata o Ega — e se auto-retrata: cheio de verve e de
irreverência, de frases retumbantes e ditos irônicos, um talento
amaldiçoado, temido e exaltado. Vejamos o Ega pelos olhos do Eça: "O
esforço da inteligência (...) terminou por lhe influenciar as maneiras e
a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pêlos
arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho
direito — tinha alguma coisa de rebelde e de satânico". Ora, se não é
esse ou quase esse o retrato do próprio Eça, tal como captado na célebre
caricatura que dele fez Rafael Bordalo Pinheiro, então já não sei ver
nem distinguir. É ainda o Ega que, em momento de impaciência com a
mediocridade e a hipocrisia da sociedade burguesa, e como que falando em
nome de seu criador, deixa Lisboa e corre para restaurar-se no
interior, lançando a Carlos e a Craft, os dois grandes amigos que o
foram acompanhar à diligência, esta frase aterradora: — Sinto-me como se
a alma me tivesse caído a uma latrina! Preciso um banho por dentro. Tal
como Carlos da Maia, também João da Ega era um diletante. Ambos têm
revoltas pouco profundas e de pouca duração. As suas grandes promessas
de realização pessoal e de transformação do mundo terminam por desmaiar
no culto quase religioso do luxo e do tédio. Passam a representar o que
mais incomodava o inconformado Eça: a renúncia e o conformismo. É com
mãos hábeis, orgulhosas e brilhantes que Eça os faz florescer em
Coimbra, em tempos de sonho e de estudo, a prometer insubmissão e luta. É
com olhar de desalento e pessimismo que Eça os deixa vencidos e
melancólicos, a "correr desesperadamente pela rampa de Santos", atrás de
um bonde e de um jantar, "sob a primeira claridade do luar que subia".
Tal como o próprio Eça se sentia, Ega e Carlos eram, naquele momento,
dois "vencidos da vida". E assim a tragédia se consuma e nos obriga a
repensar o ser humano com inquietação e desconfiança. Lisboa, 1875. A
cidade não apenas como um cenário mas como uma personagem, viva,
interveniente, testemunha e cúmplice dos acontecimentos.A cidade acorda,
o movimento cresce. De entre a multidão que circula vão-se destacando,
anunciadas pela narradora, as principais personagens desta história.Mais
tarde, ao serão, no interior da casa dos Maias, conhecida como o
Ramalhete, reúnem-se alguns distintos representantes da sociedade da
época: da intelligentsia à alta burguesia lisboeta, até alguns políticos
do constitucionalismo regenerador. Lá estavam, entre outros, João da
Ega, amigo incondicional de Carlos da Maia, sagaz e polémico, sempre
crítico da mediocridade nacional. Ou ainda Craft, com quem, nessa mesma
noite, Carlos da Maia acabaria por negociar uma quinta, nos Olivais. Ou
ainda Dâmaso Salcede, pretencioso e burlesco que revelaria, eufórico,
como uma das suas recentes conquistas, a aproximação de Maria Eduarda de
Castro Gomes, o que não deixara de provocar uma ainda inexplicável
irritação a Carlos da Maia. A sólida presença de Afonso da Maia,
patriarca da família, constitui, para todos, um valor de referência.Na
realidade, Carlos da Maia alimentava já por Maria Eduarda de Castro
Gomes uma secreta paixão e não deixava de a visitar diariamente a
pretexto de assistir clinicamente a sua governanta inglesa, Miss
Sarah.Numa dessas visitas como médico à residência dos castro Gomes, -
na rua de S. Francisco - percebe-se claramente a existência de uma
reciprocidade de sentimentos, da qual, Dâmaso Salcede acabará
inadvertidamente, por ser testemunha, não escondendo a sua surpresa e o
seu despeito, que o levara a congeminar uma forma de
vingança.Entretanto, Carlos e Maria Eduarda vivem já o seu romance na
nova Quinta dos Olivais, comprada a Craft. Assim corre o tempo dividido
entre as apressadas idas ao Ramalhete e a clandestina vida nos Olivais.
Certo dia, no Ramalhete, Carlos e Ega trocam algumas confidência sobre a
vida atribulada do primeiro, que procura esconder do avô a situação
familiar da sua amante, conhecida em Lisboa, como a senhora Castro
Gomes.Será, pois, com a maior estupefacção que Carlos receberá em sua
casa o próprio Castro Gomes que lhe esclarece, com algum acinte, que
aquela que todos dão como sua esposa não é senão a sua amante, com quem
vive e a quem paga uma existência requintada em troca de companhia.
Perante o desespero e a humilhação de Carlos, Ega sugere-lhe que
usufrua, como vinha fazendo até aí, desse amor ilegítimo.Porém, a súbita
chegada de Monsieur Guimarães vai precipitar o fim da história, ao
trazer consigo num pequeno cofre, o espólio de Maria Monforte, mãe de
Maria Eduarda, que morrera em Paris. Nesse espólio confirma-se que Maria
Monforte fora a esposa que levara ao suicídio Pedro da Maia, pai de
Carlos. A tragédia precipita-se - os dois amantes eram, no final,
irmãos. Tal revelação levará à morte o velho Afonso da Maia, ao
afastamento dos dois amantes, à partida de Carlos para o estrangeiro.Só
dez anos depois Carlos voltará a Portugal, reencontrando-se com os
amigos de sempre, e sobretudo, com Ega, com quem fará um saldo do
passado, carregado de ironia e cepticismo, uma síntese dos seus destinos
pessoais e do destino colectivo do país, como nação. Vidas falhadas ou
ainda a tempo de apanhar o futuro?