Resumos / Material
'
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
Tutaméia - João Guimarães Rosa
Postado por Marlon às 09:55
Aqui está, o último livro do escritor,
Tutaméia, publicado poucos meses antes da sua morte, a exigir leitura e
reflexão. Por mais que o procure encarar como mero texto literário,
desligado de contingências pessoais, apresenta-se com agressiva
vitalidade, evocando inflexões de voz, jeitos e maneiras de ser do homem
e amigo. A leitura de qualquer página sua é um conjuro. Como entender o
título do livro? No Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa
encontramos tuta-e-meia definida por mestre Aurélio como "ninharia,
quase nada, preço vil, pouco dinheiro". Numa glosa da coletânea o
próprio contista confirma a identidade dos dois termos, juntando-lhes
outros equivalentes pitorescos, tais como "nonada, baga, ninha, inânias,
ossos de borboleta, quiquiriqui, mexinflório, chorumela, nica".
Atribuiria ele realmente tão pouco valor ao volume fórmula como
antífrase carinhosa e, talvez, até supersticiosa? Inclino-me para esta
última suposição. Em conversa comigo (numa daquelas conversas
esfuziantes, estonteantes, enriquecedoras e provocadoras que tanta falta
me hão de fazer pela vida afora), deixando de lado o recato da
despretensão, ele me segredou que dava a maior importância a este livro,
surgido em seu espírito como um todo perfeito não obstante o que os
contos necessariamente tivessem de fragmentário. Entre estes havia
inter-relações as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e
pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar
mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto. A
essa confissão verbal acresce outra, impressa no fim da lista dos
equivalentes do título, como mais uma equação: "meaomnia'". Essa
etimologia, tão sugestiva quanto inexata, faz tutaméia vocábulo mágico
tipicamente rosiano, confirmando a asserção de que o ficcionista pôs no
livro muito, senão tudo, de si. Mas também em nenhum outro livro seu
cerceia o humor a esse ponto as efusões, ficando a ironia em permanente
alerta para policiar a emoção. – Por que Terceiras estórias –
perguntei-lhe – se não houve as segundas? – Uns dizem: porque escritas
depois de um grupo de outras não incluídas em Primeiras estórias. Outros
dizem: porque o autor, supersticioso, quis criar para si a obrigação e a
possibilidade de publicar mais um volume de contos, que seriam então as
Segundas estórias. – E que diz o autor? – O autor não diz nada –
respondeu Guimarães Rosa com uma risada de menino grande, feliz por ter
atraído o colega a uma cilada. Mostrou-me depois o índice no começo do
volume, curioso de ver se eu lhe descobria o macete. – Será a ordem
alfabética em que os títulos estão arrumados – Olhe melhor: há dois que
estão fora da ordem. – Por quê? – Senão eles achavam tudo fácil. "Eles"
eram evidentemente os críticos. Rosa, para quem escrever tinha tanto de
brincar quanto de rezar, antegozava-lhes a perplexidade encontrando
prazer em aumentá-la. Dir-se-ia até que neste volume quis adrede
submetê-los a uma verdadeira corrida de obstáculos. Seria esse o motivo
principal da multiplicação dos prefácios, de que o livro traz não um,
mas quatro? Prefácio por definição é o que antecede uma obra literária.
Mas no caso do leitor que não se contenta com uma leitura só, mesmo um
prefácio colocado no fim poderá ter serventia. Estórias à primeira
vista, num segundo relance os prefácios hão de revelar uma mensagem.
Juntos compõem ao mesmo tempo uma profissão de fé e uma arte poética em
que o escritor, através de rodeios, voltas e perífrases, por meio de
alegorias e parábolas, analisa o seu gênero, o seu instrumento de
expressão, a natureza da sua inspiração, a finalidade da sua arte, de
toda arte. Assim "Aletria e hermenêutica" é pequena antologia de
anedotas que versam o absurdo; mas é, outrossim, uma definição de
"estória" no sentido especificamente guimaraes-rosiano, constante de
mostruário e teoria que se completam. Começando por propor uma
classificação dos subgêneros do conto, limita-se o autor a apontar
germes de conto nas "anedotas de abstração", isto é, nas quais a
expressão verbal acena a realidades inconcebíveis pelo intelecto. Suas
estórias, portanto, são "anedóticas" na medida em que certas anedotas
refletem, sem querer, "a coerência do mistério geral que nos envolve e
cria" e faz entrever "o supra-senso das coisas". "Hipotrélico" aparece
como outra antologia, desta vez de divertidas e expressivas inovações
vocabulares, não lhe faltando sequer a infalível anedota do português. E
é a discussão, às avessas, do direito que tem o escritor de criar
palavras, pois o autor finge combater "o vezo de palavrizar", retomando
por sua conta os argumentos de que já se viu acossado como deturpador do
vernáculo e levando-os ao absurdo: põe maliciosamente a vista as
inconseqüências dos que professam a partenogênese da língua e se pasmam
ante os neologismos do analfabeto, mas se opõem a que "uma palavra nasça
do amor da gente", assim "como uma borboleta sai do bolso da paisagem".
A "glosação em apostilas" que segue esta página reforça-lhe a aparência
pilhérica, mas em Guimarães Rosa zombaria e pathos são como o reverso e
o anverso da mesma medalha. O primeiro "prefácio" bastou para nos fazer
compreender que em suas mãos até o trocadilho vira em óculo para espiar
o invisível. "Nós os temulentos" deve ser mais que simples anedota de
bêbado, como se nos depara. Conta a odisséia que para um borracho
representa a simples volta a casa. Porém os embates nos objetos que lhe
estorvam o caminho envolvem-no em uma sucessão de prosopopéias, fazendo
dele, em rivalidade com esse outro temulento que é o poeta, um agente de
transfigurações do real. Finalmente confissões das mais íntimas apontam
nos sete capítulos de Sobre a escova e a dúvida, envolvidas não em
disfarces de ficção, como se dá em tantos narradores, mas, poeticamente,
em metamorfoses léxicas e sintáticas. É o próprio ficcionista que
entrevemos de início num restaurante chic de Paris a discutir com um
alter ego, também escritor, também levemente chumbado, que lhe censura o
alheamento a realidade: "Você evita o espirrar e o mexer da realidade,
então foge-não-foge." Surpreendidos de se encontrarem face a face, os
dois eus encaram-se reciprocamente como personagens saídas da própria
imaginativa, perturbados e ao mesmo tempo encantados com a sua
"sociedade" (sic!), tecendo uma palestra rapsódica de ébrios em que o
tema do engagement ressurge volta e meia como preocupação central. O
Rosa comprometido sugere ao Rosa alheado escreverem um livro juntos;
este não lhe responde a não ser através da ironia discreta com que
sublinha o contraste do ambiente luxuoso com o ideal "da rude redenção
do povo". Mas a resposta é acusação de alheamento deve ser buscada
também e sobretudo nos capítulos seguintes. Em primeiro lugar, põe-se em
dúvida a natureza da realidade através da parábola da mangueira, cada
fruta da qual reproduz em seu caroço o mecanismo de outra mangueira; e o
inacessível nos elementos mais óbvios do cotidiano real e aduzido,
afirmado, exemplificado. Depois de tentar encerrar em palavras o cerne
de uma experiência mística, sua, o autor procura captar e definir os
eflúvios de um de seus dias "aborígenes" a oscilar incessantemente entre
azarado e feliz, até enredá-lo numa decisão irreparável. Possivelmente
há em tudo isto uma alusão à reduzida influência de nossa vontade nos
acontecimentos, as decorrências totalmente imprevisíveis de nossos atos.
A seguir, evoca o escritor o seu primeiro inconformismo de menino em
discordância com o ambiente sobre um assunto de somenos, o uso racional
da escova de dentes; o que explicaria a sua não-participação numa época
em que a participação do escritor é palavra de ordem. Nisto, passa a
precisar (ou antes a circunscrever) a natureza subliminar e
supraconsciente da inspiração, trazendo como exemplo a gênese de várias
de suas obras, precisamente as de mais valor, antes impostas do que
projetadas de dentro para fora. Para arrematar a série de confidências,
faz-se o contista intermediário da lição de arte que recebeu de um
confrade não sofisticado, o vaqueiro poeta em companhia de quem seguira
as passadas de uma boiada. Ao contar ao trovador sertanejo o esboço de
um romance projetado, este lhe exprobrou decididamente o plano (talvez,
excogitado de parceria com o sósia de Montmartre), numa condenação
implícita da intencionalidade e do realismo: "Um livro a ser certo devia
de se confeiçoar da parte de Deus, depor paz para todos." Arrependido
de tanto haver revelado de suas intuições, o escritor, noutro esforço de
despistamento, completou o quarto e último prefácio com um glossário de
termos que nele nem figuram, mas que representam outras tantas
idiossincrasias suas, ortográficas e fonéticas, a exigir emendas nos
repositórios da língua. Absorvidos pelos prefácios, ei-nos apenas no
limiar dos quarenta contos merecedores de outra tentativa de abordagem.
Quantas vezes, mesmo nesta breve cabra-cega preliminar, terei passado ao
lado das intenções esquivas do contista, quantas vezes as suas negaças
me terão levado a interpretações erradas? Só poderia dizê-lo quem não
mais o pode dizer; mas será que o diria? Descontados os quatro
prefácios, Tutaméia, de Guimarães Rosa, contém quarenta "estórias"
curtas, de três a cinco páginas, extensão imposta pela revista em que a
maioria (ou todas) foram publicadas. Longe de constituir um convite à
ligeireza, o tamanho reduzido obrigou o escritor a excessiva
concentração. Por menores que sejam, esses contos não se aproximam da
crônica; são antes episódios cheios de carga explosiva, retratos que
fazem adivinhar os dramas que moldaram as feições dos modelos, romances
em potencial comprimidos ao máximo. Nem desta vez a tarefa do leitor é
facilitada. Pelo contrario, quarenta vezes ha de embrenhar-se em novas
veredas, entrever perspectivas cambiantes por trás do emaranhado de
outros tantos silvados. Adotando a forma épica mais larga ou gênero mais
epigramático, Guimarães Rosa ficava sempre (e cada vez mais) fiel à sua
fórmula, só entregando o seu legado e recado em troca de atenção e
adesão totais. A unidade dessas quarenta narrativas está na
homogeneidade do cenário, das personagens e do estilo. Todas elas se
desenrolam diante dos bastidores das grandes obras anteriores; as
estradas, os descampados, as matas, os lugarejos perdidos de Minas, cuja
imagem se gravara na memória do escritor com relevo extraordinário.
Cenários ermos e rústicos, intocador pelo progresso, onde a vida
prossegue nos trilhos escavados por uma rotina secular, onde os
sentimentos, as reações e as crenças são os de outros tempos. Só por
exceção aparece neles alguma pessoa ligada ao século XX, à civilização
urbana e mecanizada; em seus caminhos sem fim, topamos com vaqueiros,
criadores de cavalos, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros,
cegos e seus guias, capangas, bandidos, mendigos, ciganos, prostitutas,
um mundo arcaico onde a hierarquia culmina nas figuras do fazendeiro, do
delegado e do padre. A esse mundo de sua infância o narrador mantém-se
fiel ainda desta vez; suas andanças pelas capitais da civilização, seus
mergulhos nas fontes da cultura aqui tampouco lhe forneceram temas ou
motivos, o muito que vira e aprendera pela vida afora serviu-lhe apenas
para aguçar a sua compreensão daquele universo primitivo, para captar e
transmitir-lhe a mensagem com mais perfeição. Através dos anos e não
obstante a ausência, o ambiente que se abrira para seus olhos
deslumbrados de menino conservou sempre para ele suas cores frescas e
mágicas. Nunca se rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os bichos e
as plantas e toda aquela humanidade tosca em cujos espécimes ele amiúde
se encarnava, partilhando com eles a sua angustia existencial. A cada
volta do caminho suas personagens humildes, em luta com a expressão
recalcitrante, procuram definir-se, tentam encontrar o sentido da
aventura humana: "Viver é obrigação sempre imediata"; "Viver seja talvez
somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente." "A gente
quer mas não consegue furtar no peso da vida." "Da vida sabe-se: o que a
ostra percebe do mar e do rochedo." "Quem quer viver, faz mágica." A
transliteração desse universo opera-se num estilo dos mais sugestivos,
altamente pessoal e no entanto determinado em sua essência pelas
tendências dominantes, às vezes contraditórias, da fala popular. O
pendor do sertanejo para o lacônico e sibilino, o pedante e o
sentencioso, o tautológico e o eloqüente, a facilidade com que adapta o
seu cabedal de expressões as situações cambiantes, sua inconsciente
preferência pelos subentendidos e elipses, seu instinto de enfatizar,
singularizar e impressionar são aqui transformados em processos
estilisticos. Na realidade o neologismo desempenha nesse estilo papel
menor do que se pensa. Inúmeras vezes julga-se surpreender o escritor em
flagrante de criação léxica, recorre-se, porém, ao dicionário, lá
estará o vocábulo insólito (acamonco, alarife, avejão, brujajara, cara
fuz, chuchorro, esmar, ganja, grinfo, gueta, jaganata, marupiara,
nomina, panema, pataratesco, quera, safio, seresma, sessil, uca,
vogoroca etc) rotulado de regionalismo, plebeísmo, arcaísmo ou
brasileirismo, outras vezes, não menos freqüentes, a palavra nova
representa apenas uma utilização das disponibilidades da língua,
registrada por uma memória privilegiada ou esguichada pela linspiração
do momento (associoso, borralheirar, convidatividade, de extraordem,
inaudimento, infinição, inteligentudo, inventação, mal-entender-se,
mirificacia, orabolas deles!, reflor!, reminisção etc) Com freqüência
bem menor há, afinal, as criações de inegável cunho individual, do tipo
dos amálgamas, abusufruto, fraternura, lunático de mel, metalurgir,
orfandade, psiquepiscar, utopiedade com que o espírito lúdico se compraz
a matizar infinitamente a língua. Porém, as maiores ousadias desse
estilo, as que o tornam por vezes contundente e hermético são
sintáticas: as frases de Guimarães Rosa carregam-se de um sentido
excedente pelo que não dizem, num jogo de anacolutos, reticências e
omissões de inspiração popular, cujo estudo está por fazer. Estonteado
pela multiplicidade dos temas, a polifonia dos tons, o formigar de
caracteres, o fervilhar de motivos, o leitor naturalmente há de, no fim
do volume, tentar uma classificação das narrativas. é provável que a
ordem alfabética de sua colocação dentro do livro seja apenas um
despistamento e que a sucessão delas obedeça a intenções ocultas. Uma
destas será provavelmente a alternância, pois nunca duas peças
semelhantes se seguem. A instantâneos mal esboçados de estados de alma
sucedem densas microbiografias; a patéticos atos de drama rápidas cenas
divertidas; incidentes banais do dia-a-dia alternam com episódios
lírico-fantásticos. Entre os muitos critérios possíveis de arrumação
vislumbra-se-me um sugerido pelo que, por falta de melhor termo,
denominaria de atonímia metafísica. Essa figura estilística, de mais a
mais freqüente nas obras do nosso autor, surge em palavras que não
indicam manifestação do real e sim abstrações opostas a fenômenos
percebíveis pelos sentidos, tais como: antipesquisas, acronologia,
desalegria, improrrogo, irriticencia, desverde, incogitante, descombinar
(com alguém), desprestar (atenção), inconsiderar, indestruir,
inimaginar, irrefotar-se etc, ou em frases como "Tinha o para não ser
célebre." Dentro do contexto, tais expressões claramente indicam algo
mais do que a simples negação do antônimo: aludem a uma nova modalidade
de ser ou de agir, a manifestações positivas do que não é. Da mesma
forma, na própria contextura de certos contos o inexistente entremostra a
vontade de se materializar. Em conversa ociosa, três vaqueiros inventam
um boi cuja idéia há de lhes sobreviver consolidada em mito incipiente
("Os três homens e o boi"). Alguém, agarrado a um fragmento de frase que
lhe sobrenada na memória, tenta ressuscitar a mocidade esquecida ("Lá
nas campinas"). Ameaça demoníaca de longe, um touro furioso se revela,
visto de perto, um marrua manso ("Hiato"). Noutras peças, o que não é
passa a influir efetivamente no que é, a moldá-lo, a mudar-lhe a feição.
O amante obstinado de uma megera, ao morrer, transmite por um instante
aos demais a enganosa imagem que dela formara "Reminisção"). A idéia da
existência, longe, de um desconhecido benfazejo ajuda um desamparado a
safar-se de suas crises ("Rebimba o bom"). Um rapaz ribeirinho
consome-se de saudades pela outra margem do rio, até descobrir o mesmo
mistério na moça que o ama ("Ripuaria"). Alguém ("João Porém, o criador
de perus") cria amor e mantém-se fiel a uma donzela inventada por
trocistas. Num terceiro grupo de estórias por trás do enredo se delineia
outra que poderia ter havido, a alternativa mais trágica a
disponibilidade do destino. O povo de um lugarejo livra-se astutamente
de um forasteiro doente em quem se descobre perigoso cangaceiro ("Barra
de Vaca"). Um caçador vindo da cidade com intuito de pesquisas escapa
com solércia há armadilhas que lhe prepara a má vontade do hospedeiro
bronco ("Como ataca a sucuri"). Enganado duas vezes, um apaixonado
prefere perdoar à amada e, para depois viverem felizes, reabilita a
fugitiva com paciente labor junto aos vizinhos ("Desenredo"). Noutros
contos o desenlace não e um "desenredo", mas uma solução totalmente
inesperada. Atos e gestos produzem resultados incalculáveis num mundo
que escapa às leis da causalidade: daí a multidão de milagres esperando a
sua vez em cada conto. Por entender de través uma frase de sermão, um
lavrador ("Grande Gedeão") pára de trabalhar; e melhora de sorte. Um
noivo amoroso que sonhava com um lar bonito e abandonado pela noiva; mas
o sonho transmitiu-se ao pedreiro ("Curtamão") e nasce uma escola. Para
que a vocação de barqueiro desperte num camponês é preciso que uma
enchente lhe desbarate a vida ("Azo de almirante"). Nessa ordem de
eventos, uma personagem folclórica ("Melim-Meloso"), cuja força consiste
em desviar adversidades extraindo efeitos bons de causas ruins,
apoderou-se da imaginação do escritor a tal ponto que ele promete contar
mais tarde as aventuras desse novo Malasarte. Infelizmente não mais
veremos essa continuação que, a julgar pelo começo, ia desabrochar numa
esplêndida fábula; nem a grande epopéia cigana de que neste livro
afloram três leves amostras ("Faraó e a Água do rio", "O outro ou o
outro", "Zingaresca"), provas da atracão especial que exercia sobre o
erudito e o poeta esse povo de irracionais, ébrios de aventura e de cor,
refratários é integração social, artistas da palavra e do gesto. Muito
tempo depois de lidas, essas histórias, e outras que não pude citar,
germinam dentro da memória, amadurecem e frutificam, confirmando a
vitória do romancista dentro de um gênero menor. Cada qual descobrira
dentro das quarenta estórias a sua, a que mais lhe desencadeia a
imaginação. Seja-me permitido citar as duas que mais me subjugaram pela
sua condensação, dos romances em embrião que fazem descortinar os
horizontes mais amplos. "Antiperipléia" e o relatório feito em termos
ambíguos por um aleijado, ex-guia de cego, do acidente em que seu chefe e
protegido perdeu a vida. Confidente, alcoviteiro e rival do morto, o
narrador ressuscita-o aos olhos dos ouvintes enquanto tenta fazê-los
partilhar seus sentimentos alternados de ciúme, compaixão e ódio; "Esses
Lopes" é a história, também contada pela protagonista, de um clã de
brutamontes violentos que perecem um após outro, vítimas da mocinha
indefesa a quem julgavam reduzir a amante e escrava. Duas obras-primas
em poucas páginas que bastavam para assegurar a seu autor uma posição
excepcional.